26 de agosto de 2015

Carta aberta ao Paul Michel


- “Estás onde? Vem buscar-me. Estou em Col de Sencours e vou ficar aqui. Não dá. Não consigo. As pernas não andam e a cabeça não responde.”
- “Tens a certeza? O que é que se passa contigo?”
- “Epá, não sei. Hoje algo não está bem. Não quero isto. Não quero estar aqui. Quero ir-me embora. Vem buscar-me, está bem?”
- “Está bem.”

Esta foi a nossa conversa ao telefone, lembras-te? Assim que desliguei o telemóvel só me apetecia chamar-te nomes. Olhei para o teu filho e pensei: “o que é que agora lhe vou dizer?” Não estás a imaginar a cara do teu filho quando lhe disse. Ele só sabia perguntar “porquê?” e eu sem saber o que lhe dizer. Teria sido mais fácil dizer-lhe que estavas magoado. Mas não. Tiveste um motivo daqueles esotéricos. Que não dá para encaixar na cabeça duma criança de 9 anos.

Depois de teres feito tudo o que fizeste até aqui, depois de mostrares a muita gente como se luta para alcançar objetivos (mesmo não sendo fisicamente dotado para isso…) a ti não te é permitido fracassar desta maneira. Tiveste um chelique na cabeça? A sério?! Isso é coisa de meninos, Paul Michel! Tu nunca tiveste uma cena dessas. Se há coisa em que és forte é na cabeça. Focas-te no objetivo e não há quem te mova um centímetro.

Naquele dia não. Foste uma menina. “As pernas não andam e a cabeça não responde”… Bolas, que conversa é esta, pá? Nunca tal coisa acreditei vir a ouvir da tua boca. Muito menos na prova onde, pela primeira vez, o teu filho e a tua mulher te vão apoiar. Lindo serviço, sim senhora…

Treinaste como um profissional. Abdicaste de tempo com a família, de tempo com os amigos. Evitaste a vida social, o convívio das férias de verão para que nada pusesse em risco a tua prestação. E chega-se ao dia e… “As pernas não andam e a cabeça não responde”.

Várias pessoas me perguntaram o que se tinha passado. Todos acharam que te tinhas lesionado (um queda, seria o mais provável). Desistir aos 38km numa prova de 160km só por um grande azar. Mas não... Quando pediam a minha confirmação do óbvio (“ele caiu, foi?”) a minha resposta era o mais tonta possível: “não, não caiu… Diz que não consegue…” Muito bom! Ficava um silêncio ensurdecedor entre mim e a pessoa do outro lado da linha.

Isto foi no dia. Foi assim que me senti, Paul Michel. Defraudada, quase enganada. Revoltada e, durante algum tempo, irritada e furiosa contigo. Afinal de contas, tanto treino, tanta estratégia, tanta logística, tanto planeamento, tanta coisa, para no dia… “As pernas não andam e a cabeça não responde”.

Se fosses à merda…

Mas isto foi naquele dia. Naquele dia quase que desejei que tivesses caído, pois seria mais fácil justificar o injustificável. Não te entendi, não te compreendi. Não reconhecia o super-herói que sempre admirei muito mais pela tua dedicação e trabalho e muito menos pelos teus resultados.

Também quero que saibas como me senti. Também tens de perceber que para mim não foi fácil. Não foi fácil gerir toda a tensão daquele momento ainda p’ra mais com um miúdo de 9 anos ali ao meu lado. Não tens ideia do que foi a minha viagem de Hautacam até ao Col du Tourmalet. A disfarçar as lágrimas pela cara abaixo sem que o garoto percebesse. Ao mesmo tempo olhava pelo espelho retrovisor e via-o a choramingar. Nem acreditava que aquilo me, ou melhor, nos estava a acontecer.

Quando te vi no Col du Tourmalet tive um misto de sensações: raiva e pena. Não sabia o que te dizer. Aliás, ainda tive dúvidas se havia de te bater. Juro. Entraste no carro e nem um beijo ou abraço te dei. Arranquei dali rumo ao hotel. O filho dormia. Era um dia para apagar da memória. Era um dia para esquecer. Ou não…

Hoje, aqui sentada a escrever-te, já tenho discernimento suficiente para analisar toda aquela situação e peço-te desculpa por tudo o que pensei na altura. Hoje reconheço o quão injusta e dura fui contigo, ainda que só em pensamentos. Naquele dia deste-me uma grande lição. A mim, a ti e ao nosso filho. Daqui a uns bons anos, tenho a certeza que ele se lembrará daquele dia e do que aprendeu.

Aprendeu que afinal os gigantes também caem.

Aprendeu que o seu super-herói também tem fraquezas emocionais.

Aprendeu que depois de uma derrota é tempo para repensar o futuro.

Aprendeu que a cabeça é o nosso maior e mais forte músculo.

Aprendeu que não são as pernas que sobem montanhas, mas sim o coração.

Aprendeu a esperar horas no topo do monte agarrado a uma bandeira.

Aprendeu que horas de trabalho e esforço nem sempre se traduzem em vitórias.

Aprendeu que as frustrações e os fracassos nos ensinam mais que as glórias e os troféus.

Aprendeu que chorar lava a alma.

Aprendeu ele… E aprendi eu.


Obrigada "Urso Velho"

O filho à espera do pai

22 comentários:

  1. Sem palavras, amigos! beijos e abraços a voces todos.

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  2. A Cabeça é que manda! Um atleta tem estes momentos e que com eles aprendemos muito, inclusive ficamos a conhecer melhor o nosso corpo.

    Agora é definir próximos desafios e treinar... seguir em frente que a vida é curta! Vamos curtir os trilhos! :-D

    Parabéns pelo excelente texto Anabela!

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    1. Sem dúvida que sim, André! A prova onde mais aprendi e sem a correr...
      Beijinhos

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  3. Ó Belita ... nem sei o que dizer ... quem está agora a tentar disfarçar as lágrimas sou eu, o que vale é que só estão meia dúzia de gatos pingados no escritório ... o que queria dizer ao Paul Michel já o disse no dia, não altero uma virgula ... não é por este percalço que deixa de ser o campeão que é, nada apagará o que ele já conseguio fazer em tão pouco tempo, sendo um grande exemplo para mim ... consigo imaginar a desilusão para ti e para o filhote, mas acredito que a maior desilusão foi a do Paulo, nem consigo imaginar ... o vosso filho um dia vai entender o que se passou, e tenho a certeza absoluta que nada alterou em relação ao pai, que ele vê como um herói ao ponto de o querer imitar (MDS daqui a 9 anos... preparem-se) ... o Paulo é forte, vai fazer o luto (tal como tu parece que já o fizeste), e este passo atrás foi apenas para tomar lanço para a próxima aventura ... ainda se vão rir muito desta... "ó Pai, lembras-te aquele dia nos Pireneus, a parva da mãe fartou-se de chorar, pensei que lhe fosse dar alguma coisinha ruim :)" .... bola para a frente minha gente ... Beijinhos para ti e um forte abraço para o Paulo e para o vosso filhote (já agora um beijinho à filhota tb)

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  4. Este artigo tocou-me e, confesso, estava a ficar revoltado contigo pela injusta e, direi mesmo, insensível que estavas a ser.
    Até que li "Hoje reconheço o quão injusta e dura fui contigo, ainda que só em pensamentos" e deixei de ficar "zangado" contigo. Depois li "Naquele dia deste-me uma grande lição" e a partir daí, tudo mudou, transformando-se este artigo num artigo de referência! Num verdadeiro hino ao esforço e aos seus mistérios.
    Eu posso ser meio suspeito pois se exulto nos momentos de glória, muito mais apoio quando as coisas não correm bem. E digo-te que fiquei com uma (ainda!) maior admiração pelo Paul pois ele provou o quanto gigante é. Porque, como dizes e bem, "afinal os gigantes também caem".
    E acho que a lição que o teu filho aprendeu, foi muito mais importante para o seu futuro do que mais um dia de glória.

    Um grande beijinho a ti, um grande abraço ao Paul!

    ps - Repito, GRANDE artigo! :)

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    1. Como já referi, foi a prova onde mais aprendi. E sem a correr.
      Trago de lá uma grande lição.
      Beijinho grande João!

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  5. Que bonita dedicatória, Anabela. Consegui compreender o que sentiste, todas as fases de emoções ate à aprendizagem final.
    Estou com o Carlos, ainda se vão recordar desta prova e (sor)rir.
    Beijinhos

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    1. Sabes, Rute, hoje já me consigo (sor)rir de alguns momentos. Uns dois ou três, vá...
      Beijinho

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  6. Queridos amigos Paul M. e Anabela,
    li e reli a postagem,difícil traduzir em palavras o que entendi e senti.
    Uma coisa é certa: admiro voces mais ainda e obrigado por serem meus amigos.
    Grande abraço.

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    1. Obrigada amigo Jorge!
      Nós é que agradecemos o carinho!
      Forte abraço

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  7. Rais parta!

    Bem sei que tinhas que o escrever e até publicamente mas ainda assim, fizeste-me transpirar dos olhos!

    Percebo esse rodopio de sentimentos, essa impotência, essa incomprensão por alguém que é forte ter um momento de fraqueza, de humanidade...(estou a lembrar-me que escrevi algo semelhante não há muito...), ainda mais tendo o petiz, futuro terminador da MDS e UTMB, por perto.

    Que dizer, como dizer, que fazer, como fazer...olha, sabes que mais, não sei que escrever, o vosso percurso tem sido fantástico, nem sempre tudo corre como queríamos, mas não é esta situação que vos tira o brilho.

    Ainda andei à procura de um artigo de um americano (não...não é esse...) que lhe aconteceu algo semelhante e as preocupações dele eram as mesmas, tenho os meus filhos, mulher, pais, comigo, que viagem perdida...não o seu bem estar, mas a possivel decepção que os outros possam sentir.

    No fundo, a decisão não pode ter sido fácil de tomar mas foi a do momento e agora é seguir em frente.

    Não sei se vale de algo, era mesmo apenas para escrever (dizer...) que foi uma bela posta, que acredito te tenha saido da pele.

    Bjs e um grande abraço ao Paul Michel.

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    1. Sabes, JNR, alguém me disse: "desistiu? Epá, é porque é humano. Até sobre isso já tinha as minhas dúvidas". :)
      De facto, quando na gíria desportista se apelida alguém de 'máquina' tem a ver com uma capacidade automática de fazer as coisas. De por de lado o racional, de seguir sempre em frente, correndo por vezes riscos. Pela 1ª vez ele deixou de ser máquina e mostrou um outro lado: o lado da fraqueza física e emocional.
      Posso dizer-te que logo no dia a seguir ele arrependeu-se da decisão.

      Beijinho e muito obrigada!

      (Como é que se chama mesmo o americano?) :)))

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  8. oh, pá!
    vês porque não frequentamos mais assiduamente aqui o teu estaminé?? como queres que prossigamos com o dia com este nó no peito depois de lermos coisas destas?? hein? explicas-nos, por favor??!
    (ainda por cima porque uma vida ligada ao desporto, muitos anos de competição a sério, fazem-nos saber exactamente o que é sentir o que ele sentiu e o que é sentir e pensar - e concluir - aquilo que tu sentiste e pensaste - e concluíste.

    (ah! e já lemos isto há uns dias, tivemos de esperar para conseguir escrever um comentário em condições)

    beijinhos para todos

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    1. Que saudades!!
      Não é por virem cá poucas vezes que são menos considerados!
      Beijinhos para vocês, dupla maravilha!!

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  9. Não tenho palavras!
    Fiquei tão serio e tão "seco" que até a trato por Anabela e não por Macarena!
    Como não sei o que dizer vou dar lugar de destaque a este, magistral, texto lá no UK.
    Beijinho.

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    1. Também fiquei muda naquele dia, Jorge, acredite...
      Mas já passou...

      Quanto ao destaque no UK, também fico muda e sem palavras! Grata por tão nobre distinção!

      Beijinho da Macarena!

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  10. Ana,
    Tem coisas que acontecem que nem se quer imaginamos os motivos de tão grandes que eles são. Uma coisa é certa, Paul teve muita coragem e discernimento para te ligar pedindo resgate. Só os fortes tem tamanha bravura. Parabéns pelo aprendizado.
    Força pra vocês e vamos em frente!
    beijo
    Helena
    Blog Correndo de bem com a vida
    Twitter @Correndodebem

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    1. Hoje reconheço isso, Helena, claro!
      Mas no momento o coração veio à boca!!
      Beijo

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  11. Compreendo a tua frustração. Não deve ser nada fácil para quem está de fora mas a viver tão de perto a aventura do marido e pai.
    Mas tu sabes que há dias em que simplesmente a coisa não dá. Por vezes a cabeça não funciona, por vezes não nos apetece por mais treino que tenhamos, coisa que ao Paulo não faltou com certeza.
    Mas ele é um herói por tudo o que já fez e como todos os heróis tem direito aos seus dias menos bons.
    Ele fez o mais difícil, decidir fazer a prova e treinar para ela. Lutou durante meses, é um lutador e com certeza que na próxima vai arrasar!

    Quanto a ti, tiveste uma reacção a quente, uma aventura tão grande mexe com as pessoas.
    Também tens direito.
    O importante é a lição que tiramos destes momentos menos bons e concordo quando dizes que o vosso filho aprendeu e muito! Aprendemos sempre mais com os momentos menos bons do que com os bons, daí eles também serem fundamentais na nossa vida.

    Força!
    E parabéns ao Paulo! É um campeão e tem-no provado desde que corre.

    Beijinhos grandes para vocês

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    1. Percebeste muito bem o que senti, Isa. Aliás, acho que todos aqui perceberam. Hoje sei que fui injusta. Eu própria, à minha dimensão, já passei pelo mesmo, por isso sei bem o quanto custa. Mas na altura... Brrrrrr... :(

      Muito obrigada, amiga!
      Beijinhos

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