2 de outubro de 2013

Serra D'Arga 2013 - Capítulo III

Senti que ele saiu. Fechou a porta do quarto do hotel não sem antes me dar um beijo e dizer 'até já'...

Acordei pela manhã e foi só tomar um duche rápido, equipar-me a rigor (não, desta vez não fui de saia) e tomar o pequeno almoço com vista para o Rio Minho. Que dia cinzento! As previsões apontavam para chuviscos, mas o céu estava tão escuro. Enquanto degustava o meu croissant reparei que o vento era forte e os pingos da chuva eram grossos. Aguardemos por melhores momentos, talvez daqui a um par de horas a coisa melhore. Afinal de contas eram oito horas da manhã e a prova era às 10.15m.

As quatro meninas, eu, a Babe, a Ritta e a Anna, faríamos o trail de 13km. Ou outros dois meninos, o Paul Michel e o Peter Days, fariam o trail dos crescidos, o dos 45km que começou às 8h. Eles levaram um carro e nós ficámos com outro.

Eram 9h entrámos as quatro meninas no carro rumo a Dem, bem ali ao lado de Caminha.

Lembro-me como se fosse hoje, mas estava calor. A Babe disse-me: "como é que é patroa, vamos à Serra D'Arga?

Chegámos a Dem. Chovia copiosamente. Os carros eram mais que muitos e todos já estacionados nas bermas da estrada. Estacionámos a 900m do centro. Ainda dentro do carro sentiam-se os nervos. A esta altura o vidro do carro já estava embaciado. Continuava a chover e nós as quatro tentávamos vestir os impermeáveis, apertar as mochilas, proteger os telemóveis, colocar as bandas, ligar os relógios (o meu teimava em não localizar satélite)... Enfim, um sem número de coisas que ainda faltava fazer antes de alinhar na meta. Faltariam agora cerca de cinquenta minutos para o início.

Olhava para o céu e via aquele céu tão característico de meses como Dezembro, nunca aquele céu seria um céu de Setembro. Em Setembro ainda há raios de sol e pássaros a cantar.

Já andas há duas horas na serra... Está frio, está vento, está nevoeiro... O chão deve escorregar imenso. Lembras-te do que te disse?

Saímos do carro a toda a velocidade. Aproveitei e fiz um ligeiro aquecimento. Chovia bastante e não me queria molhar (agora estou a rir-me porque a esta altura ainda pensei que poderia fazer esta prova e chegar ao fim apenas com os pézitos húmidos...) Assim que chegámos ao centro de Dem procurámos um local para nos abrigar. Nada mais que a Junta de Freguesia, local onde se distribuíam os dorsais. Ali ficámos cerca de meia hora.

O sino da capela soou. Estava na hora. Rapidamente fomos até à meta e, desta vez, partimos da frente. Nunca tinha acontecido até hoje. Sempre parti do meio para trás, quando não mesmo atrás.

Os minutos de espera serviram para descontrair um pouco e ao som do 'DJ' de serviço ainda houve tempo e disponibilidade para um pézinho de dança. Rapidamente percebemos que para o ano temos uma forte chance de ser contratadas como Majoretes do Trail Serra D'Arga! Fica a dica, Carlos Sá. Cobramos baratinho, ok?

Nos  minutos que antecederam a partida o Carlos Sá avisou das condições que poderíamos encontrar lá em cima e que no segundo abastecimento seria o momento oportuno para equacionar se continuaríamos em prova ou não. Ele referiu que haveria sítios onde o acesso por meios motorizados era impossível, logo tornava-se difícil ir recolher alguém. No segundo abastecimento seria uma boa altura para pensar em continuar ou não.

Confesso, que foi a primeira prova em que participei onde o tema "desistência" foi tratado com a maior normalidade, como se desisitir fosse tão normal quanto acabar. Tal como ele falou de abastecimentos, no facto da prova ter 14,5km e não 13km, das bandeiras sinalizadoras... Falou também do tema 'desistência'.

Não desistas, não és gajo para desistir. Mas há sempre uma primeira vez, não há mal nenhum... O Sá já desistiu. Não tenho nada aquela visão que desistir é para fracos. Desistir é um sinal de inteligência. Mas deixa-nos aquela sensação estúpida... Não! Não és gajo para desistir. Acho eu...

Partimos num ambiente bastante alegre e descontraído. Cedo se percebeu que quem estava neste trail, o dos 13km que afinal foram 14.5km, queria sobretudo caminhar ou correr descontraidamente. Ninguém saiu disparado da meta a correr desalmadamente. O meu lema era: correr quando for possível, andar quando é necessário!

E assim fiz. E pela primeira vez numa prova os primeiros quilómetros nem foram os mais difíceis. Apesar de até serem a subir este primeiros quilómetros foram feitos na maior das tranquilidades.

Mas assim que saímos da estrada e começámos a entrar na serra percebi que este trail em nada tinha a ver com o da Pampilhosa da Serra. Começo a ver muito pedregulho, muita poça d'água, muitos arbustos... Tentei sempre contornar as poças d'água (outra coisa que agora me arranca uma valente gargalhada! Mal sabia que teria que atravessar um riacho!)

Logo ao segundo ou terceiro quilómetro a primeira queda. Não minha, mas de um rapariga que tropeçou numa zona de pedras e foi com o queixo ao chão. Rapidamente todos os que ali estavam ajudaram e ela levantou-se. Mãos e cara arranhada. Estava bem e disse que conseguia seguir.

E tu? Já caíste? Se fosse grave já se saberia. Antes de partir perguntei ao Carlos Sá se estava tudo bem com a prova dos 'grandes' e ele disse que só um participante é que tinha ido parar ao hospital. Era um carpinteiro. Não és tu. Não deves ter caído.

Dali em diante foi sempre em bom ritmo, alternando a corrida com a caminhada conforme as exigências do terreno. Passo o primeiro abastecimento, aos 3km, e não paro. Já nem paro nos abastecimentos!! Trouxe comigo um litro de água e não tenho fome nenhuma. Portanto, siga!

Nesta altura começam a cruzar-se connosco os participantes do trail de 21km. Começou o stress. Aquela malta vinha animada e com o gás todo! Passam por nós em grande velocidade. Admito que nesta fase da prova me enervei um bocadinho. Alguns trilhos eram estreitos, eles vinham com pressa, e a minha era relativa, e gritavam lá longe: ESQUERDA! ESQUERDA! ESQUERDA! Ok, amigo, não te enerves nem me atropeles!

E lá passavam eles e elas. E eu também fui passando. Nesta fase da prova sentia-me muito bem. Lembro-me que corri desde antes do abastecimento até ao 5ºkm. Onde se dá a viragem de performance. E porquê? Basta verem o gráfico:


A partir deste quilómetro comecei e perder ritmo. E eu que até sou tão jeitosa a fazer subidas... O pior momento da prova, para mim, foi aqui, onde dei um passo com a cadência equivalente a três:

Apenas se vê parte da escadaria. Depois da curva havia quase outro tanto.


Quando estou aqui, olho, e vejo isto... Só me lembro de respirar fundo e dizer muito baixinho: pu"#% que pariu!

Numa outra circunstância isto fazia-se bem, mas nesta altura eu já estava molhadinha até aos ossos, porque já tinha chovido bastante, já me sentia cansada, já me pesava a mochila... Sabem aquela fase em que tudo já nos faz confusão?! Já tudo nos irrita e já tudo é pretexto para reclamar? Pronto, é isso. Eu estava nessa fase. É a chamada TPM do trail.

Ainda bem que tens bastões. Deves andar a fazer subidas fantásticas, no meio de calhaus e troncos de árvores...

Antes desta escadaria tivemos o privilégio de atravessar um riacho. Nada que não se fizesse, mas com calma. Um pé em falso e era banho na certa com probabilidade elevada de partir algum osso:






Pronto! Pata no charco! Não há hipótese. Refrescas os pés e a mente!



 Ritta Bramble esteve quase, não esteve?!

Gosto muito desta sequência de fotos. Percebe-se que as sócias iam concentradíssimas. Mas mais concentradas que nós as duas estavam a Babe e a Anna Island. Para elas atravessar riachos impõe-se como um desafio de vida ou morte, quase... As expressões de zelo, concentração e minúcia a cada passo dado revelam o perfil ultra-trailiano destas duas! Ora vejam:


Queres que tire ou ponha o capuz? Como é que fico mais gira?

E o prémio Miss Simpatia Serra D'Arga 2013 vai para... Não há quem faça trails a sorrir desta maneira, pois não? Chama-se a isto em modo Baby Runner!

Há quem vá p'rá guerra, há quem vá espalhar magia! Adiante...

Passei o riacho e fiz a subida. Lá no alto estava o segundo abastecimento. Também não parei. Tinha água na mochila. Continuei em frente. E a partir daqui dá-se novamente uma virada na performance. Já vos deve ter acontecido certamente. Estamos em prova e sem motivo aparente parece que levamos uma injecção de adrenalina.

A subida interminável até lá ao alto foi feita entre nevoeiro, no meio de pedras e alguns estradões. Só me lembrava da saga do Senhor dos Anéis. Estão a ver aqueles cenários invernosos? As brumas misteriosas e incertas eram a nossa companhia, as rajadas de vento e a chuva intensa compunham aquele quadro (para mim) dantesco. Admito já aqui que nunca tinha feito nada, nem sequer caminhar, nestas condições. Havia sempre alguém por perto, atrás ou à frente, o que me deixou sempre tranquila.

Se por um acaso do destino tivesse ficado por ali completamente sozinha... (fim do momento Baby Runner mariquinhas).

Passado esta fase mais cinzentona do percurso - e em que cheguei inclusive a correr, pois a vontade em sair dali o mais rápido possível era muita e queria acabar depressa com aquela aventura -  surge a melhor fase da prova. Agora as descidas seriam o prato do dia. É deixar rolar até à meta.

Aqui surge também a parte mais feia da prova. Começámos a correr em plena serra queimada. Os incêndios devastaram muito terreno na Serra D'Arga. Um flagelo que visto e vivido é desolador. Até o cheiro a queimado incomodava. Mas lá se fez.

Nesta zona encontro um grupo de quatro pessoas que me pareceram ser boas companhias: faladores, animados e a um ritmo semelhante ao meu. Colei-me a eles. Apetecia-me ir com companhia, já andava há algum tempo sozinha. E assim foi. Lá fomos dizendo e avisando uns aos outros aqui e acolá: "cuidado, estas pedras escorregam; atenção, as folhagens são escorregadias; é por aqui, está ali a bandeirola; vá, 'bora, já falta pouco; quem quer ser agora a lebre?"

Faltavam apenas dois quilómetros para acabar a prova, já quase, quase a entrar em Dem oiço: "atenção, pedra escorregadia, com folhas e riacho ao lado"!

E eu olho e digo: "sim, sim, cuidado aqui" - dizia eu para a outra companheira que vinha atrás de mim.

CATRAPÚÚÚÚÚÚÚMMMMM

Fui com o back-side ao chão. Direitinha... Sem apelo nem agravo.

Rapidamente voltaram todos para trás, os três que seguiam na frente, e perguntaram se estava bem. Uma menina deu-me logo a mão e puxou-me. Estás bem? Estou óptima! 'Bora, não pára, não pára!

Sabia lá eu se estava bem ou não. Sabem aquela sensação em que estamos "quentes" e mesmo que tenhamos partido alguma coisa não se nota nada? Pois, era assim que eu estava. Pensei para comigo: nem penses, miúda! Agora que estás a acabar isto não te ponhas com estas merdices... Corre, mexe o fofo, ajeita o lencinho da cabeça e corre até à meta.

Acabo de cair. Sempre me disseste para procurar terreno sem pedra, mas aqui não tenho outra hipótese. É pedra de um lado é pedra do outro. Além disso os da frente passaram sem cair. É falta de jeito, eu sei. O que é que queres? Eu não tenho bastões. E mesmo que tivesse, sou maçarica... E tu, já caíste? Tanta vez te disse: cuidado, não me caias p'ra lá...

Entramos em Dem. Já se avistam pessoas simpáticas a bater palmas. Poucas, mas muito simpáticas. O tempo não estava convidativo para que a população estivesse ali à nossa espera. Continuava a chover e a fazer frio.

Na descida para a meta, este grupo com quem fiz estes últimos quilómetros, olha para trás e diz: "anda daí, corta a meta connosco!" Até hoje nunca me tinha acontecido. Ser convidada, por pessoas desconhecidas, para cortar a meta.




Cortei a meta com eles, feliz e contente, com o tempo de 2h15m. Não sei quem são, não sei o nome deles sequer. Agora arrependo-me de não ter falado no final com eles, perguntar pelos seus nomes, saber de onde são, o que fazem, qual o próximo desafio... Não o fiz, simplesmente porque assim que corto a meta e vejo o Carlos Sá dirijo-me a ele e pergunto: "como é que está a correr a prova dos crescidos?" E ele diz: "não te preocupes, está a correr bem, apenas um atleta partiu os dentes". 

Vejo a Ritta Bramble que chegou antes de mim. Damos um abraço e dizemos: "agora só falta esperar pelas outras duas. E pelos outros dois". 

Eu já cheguei. Vais demorar? Estou aqui na meta à espera da Babe e da Anna Island. Entretanto já chegaram os primeiros atletas dos 45km. É só gente com ar de Rambo e Hércules. É só homens magros, secos, musculados... Ainda não vi nenhuma mulher chegar. Algumas caras são assustadoras. A sua expressão não engana. Chegam à meta como quem saiu do inferno e entra no paraíso. Eu espero... Eu espero sempre.


(Continua)

18 comentários:

  1. Espetacular texto Anabela. E umas fotos de fazer muita muita inveja. :)
    Fico à espera do capítulo IV.
    Beijinhos

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    1. :) Obrigada Tiago! Serra D'Arga tira-nos o fôlego lá e cá (a escrever...)
      Beijinho e até já!

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  2. Então???
    Isso não se faz, parece o intervalos nos cinemas...
    Despacha-te que estou a gostar!
    Beijinhos

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    1. Sabes, Carla, não gosto de relatos muito longos. Por isso decidi escrever à moda do Jack Estripador (por partes!) Já só falta mais um. E aviso já que vai ter um final de novela brasileira. Tudo vai acabar bem! :)
      Beijinhos

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  3. Esta brutal.. gosto!
    Se escreves assim para 14km.. no próximo ano fazes um livro da tua prova!
    começas agora com o primeiro treino pós Arga.
    E titulo.. o meu caminho ate me tornar uma ultramaratonista! :)
    Força!

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    1. :)) Excelente ideia, Nainho!
      Uma das vantagens em ter um blogue é que um dia dá para recolher estes relatos e compor alguma coisa mais próxima de um livro. Mas sabes, eu escrevo como penso e falo e este "estilo" não é muito apreciado no meio literário...
      Mas isso também pouco me interessa. Escrevo para mim e para as pessoas que gostam de me ler e partilham comigo esta paixão!
      Muito obrigada pelas palavras de incentivo e já tomei nota dessas "dicas"!
      Beijinhos

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  4. aiiiiii....mau...já sabia....venho agora do blogue da menina que corre como uma menina....quase que jurei que não lia mais nada sobre a arga mas não podia deixar de ler este teu texto ...brutal...parabéns...olha lá....tu que tens umas certas "connections" não podias falar com o Sá para antecipar a GTSA 2014 para o próximo fim de semana? É que eu não sei se vou aguentar um ano à espera....e venha de lá a parte 4....gostei da tua parte de vernáculo nortenho"...em grande :D
    Beijinhos e espero que esteja tudo bem com o teu back side

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    1. Carlos, acredita que ainda hoje tenho vários momentos do dia em que penso na prova. Aquela prova não se estranha nada, entranha-se logo! :)
      Não acredito que o Sá me desse ouvidos já para o próximo fds...
      Vá, vou acabar com isto porque já vai longo. Eu nem gosto de relatos muito longos, desta vez estou a exceder-me, mas apetece-me muito escrever... Enfim... O back side está supinpa! ;)
      Beijinhos

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  5. Belo relato Anabela! Percebe-se que foi uma experiência memorável. E pelos relatos acho que os trails mais curtos ficam a saber a pouco ou não é? ;)
    Beijinhos e força para a Meia!

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    1. Isso mesmo, Isa! Por isso há que voltar e fazer os 21km e depois os 45km e depois... E depois... E depois... ;)
      Beijinhos e conta comigo em pensamento para domingo! Estou a torcer, ok?

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  6. Olha Anabela estou toda arrepiada com este teu texto! EXCELENTE!!! Lindo texto.... e eu quero maissssss.... venham mais capítulos... sinto-me a ler um dos livros da minha escritora preferida, qe fico agarrada a ele e esqueço tudo. Mais hovesse para ler mais eu lia :D

    Beijinhos*

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    1. Só te prometo mais um capítulo e asseguro-te que não é tipo novela brasileira, vai ser simples... Nada de especial...
      Prometo-te a ti, e a mim também, que quando as provas valerem a pena farei o possível para relatá-las o mais fielmente que conseguir. Mesmo que isso implique escrever a metro, como é o caso. :D
      Beijinhos e muito obrigada por estares desse lado a ler!

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  7. Muitos parabéns Anabela! Pela prova e pelo excelente relato. Esta a ser uma excelente saga... Com a qualidade de escrita nestes níveis uma pessoa até fica embaraçada de publicar os seus "relatozecos"... ;) Adorei a sequência de fotos da travessia do riacho.
    Boa prova no Domingo! Bjnhs.

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    1. Obrigada Rui! Os "relatozecos" de que falas são apenas estilos mais resumidos, mas que nos emocionam quando os lemos, porque nos revemos nas dificuldades, nas conquistas... E nunca ouviste dizer que as mulheres falam, neste caso escrevem, demais?? :)))
      Beijinhos

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  8. Menina... Adorei e foi um "retrato" mui bonito!!! parabéns :) :) :)

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  9. Até agora este foi, para mim, O relato!
    Beijinhos Jorge

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  10. Serra d'arga nunca mais vai ser a mesma sem a nossa "MAGIA"!
    ;)

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