21 de abril de 2014

6ª etata da MDS em imagens (e discurso direto)

Hoje é que era mesmo o último dia. Acordei às cinco e meia da manhã com o sol a entrar na minha tenda. Tive a sorte de assistir ao nascer do sol no meio do deserto do Sahara. Aliás, tive também a sorte de dormir no meio do deserto. Não há céu como aquele, sabiam? O céu mais parecido com aquele é talvez o do meu Alentejo.


Fui tomar o pequeno-almoço na tenda da organização. Olhei à minha volta e lembrei-me dos campos de guerra. Estão a ver aqueles cenários de guerra com acampamentos militares onde de manhã se vêm panelas a deitar vapor e militares a fazer fila para receber a ração de combate? Pois era exatamente a imagem que os meus olhos captavam. A diferença é que ali as pessoas tinham cara alegre.

Combinei com o Paul Michel na meta do lado esquerdo (os nossos pontos de encontro em qualquer prova são sempre 'na meta do lado esquerdo'). Uma hora antes já lá estávamos a aquecer o lugar. Ou melhor, o sol é que nos estava a aquecer a nós. Às 8.30m da manhã já estavam 28ºC.








Marco Olmo, 66 anos, começou a enfrentar o deserto aos 40 anos. Com 58 anos tornou-se Campeão Mundial ao vencer o Ultra Trail du Mont Blanc e já foi duas vezes 3º lugar na MDS.
E é uma joia de moço :)))


Feito o briefing e os cumprimentos por parte da organização deu-se início à última etapa da 29ª edição da MDS. E eu também estava lá! Estava excitadíssima por ir correr no deserto!

Foi nesta etapa que conversámos e ele me foi contando episódios e situações de toda a semana. O que ele passou, o que os outros passaram, o que sofreu, o quanto chorou, o quanto sorriu, o quanto e com quem gritou, o que sentia quando chegava à meta, o que sentia quando chegava à tenda…

"A primeira etapa foi muito, muito difícil. Não estava à espera. Dos 34km de etapa, cerca de 15km foram feitos em dunas que pareciam paredes. Subia uma e avistava outra, subia essa outra e via mais uma. Foi isto durante 15km com 42.ºC. Esse era o dia em que a mochila me pesava mais. Com receio do meu pé e com aquele terreno decidi fazer a etapa toda a caminhar. Nesse dia pensei: se todas as etapas forem como esta, eu desisto. Juro que me passou isso pela cabeça".



"Houve um dia em que uma mulher se agarrou a mim a implorar água. Disse-me que estava ali há mais de meia hora parada a pedir água aos atletas que passavam. Por segundos hesitei em dar-lhe água, pois pensei: daqui a 5km sou eu... Nesta prova ou matas ou morres." 


"Sabes o que é chegar ao fim de uma prova estar tão exausto que nem consegues comer? Depois de descansar um pouco lá me obrigava a comer. Mas ficava sempre com fome. Adormecia com fome e acordava com fome. E corria com fome."



"Todos os dias de manhã avistávamos um grupo de pessoas em fila indiana que, quase que por vergonha, atravessavam o acampamento como se estivessem a despedir-se de nós rumo ao corredor da morte. Todos seguiam cabisbaixos atrás de um elemento da organização. Eram os que desistiam. Iam embora."

Isto não são dunas, são dunetes!


"Sempre que chegava a um controlo dirigia-me à lona onde depositávamos as garrafas de água vazias em busca de restos de água. Parecia um mendigo à procura de comida no lixo. Abanava, sacudia a lona e lá encontrava uma ou outra garrafa com um restinho de água. Não bebia, claro. Mas usava essa água para molhar o meu chapéu. E assim poupava a minha só para beber."


Na etapa dos 81km, que nem quero recordar o sofrimento, tive um momento muito difícil, aos 70km: tive de parar pois as minhas pernas não davam nem mais um passo. Bloqueei fisica e mentalmente. Não conseguia sequer andar. Nesse momento o meu relógio (a minha companhia, com quem eu muitas vezes falava) ficou sem bateria. Sentei-me durante meia hora. Aproveitei para carregar o relógio. À medida que via a imagem da bateria a fazer load, também eu comecei a ganhar forças. Tomei um gel e comecei a caminhar. Ao fim de cinco minutos comecei a correr como se não tivesse feito ainda nenhum quilómetro. Corri com todas as forças até à meta. E quando lá cheguei... Foi aquilo que tu viste. Eu e a bandeira. A bandeira e eu."








"Após a etapa dos 81km pensei na estratégia a seguir. Teria uma noite e um dia de descanso. A estratégia foi: dormir ao máximo e comer tudo o que tivesse na mochila, excepto as calorias obrigatórias para a etapa de 6ª feira. Comi tudo o que podia. Senti-me muito bem nessa etapa, era a última, corri como sei correr, como costumo correr. Foi a minha melhor etapa, por ser a última, por ser a despedida e por ir cortar a meta e terminar a minha MDS. Percebes o que te quero dizer? Além disso fiz uma aposta... Que ganhei!"



Terminámos juntos, felizes agarrados à nossa bandeira! Só não dançámos porque o Paul Michel tinha medo que lhe pisasse os pés. :))

Esta é daquelas aventuras que jamais esqueceremos. Uma história para contar aos netos. Termina assim a aventura MDS que tantas alegrias, mas também algumas tristezas, nos trouxe. O balanço é francamente positivo, apesar das mazelas físicas que o Paul Michel trás consigo e todas aquelas que ainda hão-de surgir. 

Mas esta vida é uma escolha. Quem escolhe viver, arrisca! E ele arriscou: deixou para trás uma vida sedentária. A maior vitória do Paul Michel foi ter arriscado numa vida melhor. E nisto foi medalha de ouro, acreditem!

Quem arrisca lesiona-se, sofre e chora. Faz parte desta equação que é ser corredor por prazer. Mas vive!



E vive feliz!

Música da última etapa da MDS - tocou no momento da chegada à meta.

Por favor, oiçam MESMO esta música. E enquanto o fazem façam a vossa escolha.

22 comentários:

  1. E sabes o quanto chorei agora?! Pois....

    Essa música é muito especial. Tem uma letra que toda a gente deveria ouvir com atenção e interiorizar!
    Deviam fazer dessa música a sua vida!
    O Paulo foi sem dúvida um grande Homem quando decidiu mudar de vida e fê-lo com distinção.
    Foi um prazer ter assistido a esta aventura, obrigado por terem partilhado esse momento com todos nós. É impossível ficar indiferente perante tanta garra, determinação e principalmente AMOR!
    Posso dizer uma coisa posso?!
    Quando for grande quero ter um amor assim :)

    E é como tu dizes, viver feliz é uma escolha, está nas nossas mãos. :)

    Um grande beijinho a vocês e ainda bem que vos conheci :)

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    1. Martinha, esta aventura tinha de ser partilhada. Não era justo ficar só para nós. Ainda mais depois de todo o apoio e entusiasmo que sentimos da parte de tantas pessoas, de ti em especial.
      E sabes, até o amor é uma escolha! Só tens de estar atenta para escolheres bem! ;)
      Um beijinho muito grande! Acredita que me sinto uma sortuda em ter conhecido pessoas como tu! Apaixonadas pela vida que é vivida!

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  2. Fico "desfeito" com estes artigos :)))
    Conheço bem as emoções rebeldes que nos tomam por completo numa Maratona e que nos perseguem após a mesma. E estou a falar duma corrida que é "curta" e nada tem a ver com esta aventura de sobrevivência. Aí, nem imagino o que se possa sentir. Fico sem palavras!

    Sinto-me extremamente feliz por vos ter conhecido e, assim, podido acompanhar esta aventura épica.

    Nunca é demais dar os PARABÉNS! SÃO UNS HERÓIS!!!
    E claro que me refiro aos dois pois esta aventura foi a dois :)

    Beijinho Anabela, abraço Paulo, e obrigado por partilharem estes maravilhosos e sentidos artigos

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    1. Obrigada João! Tal como a Marta também fazes parte daquele grupo de pessoas que conheci, pode dizer-se recentemente, mas que tanto em comum já temos. São também pessoas como tu que vivem a vida apaixonadamente: sorrindo, gritando, partilhando conquistas, anunciando as derrotas, lançando desafios... É assim que somos felizes, não é? Nem sabemos sê-lo de outra maneira.

      Foste uma força da natureza, João! Acredita que o teu entusiasmo foi contagiante e em determinados momentos pensava: bolas, ele também sofre e vibra com isto... Será possível?! É...

      Eu é que te agradeço a forma sincera e amiga como demonstraste SEMPRE o teu apoio. Não esqueceremos! O Paulo ainda hoje me fala das tuas mensagens. Sem mencionar o conteúdo, disse-me o quão importante foi ler uma em particular num momento, por coincidência, difícil para ele.

      Bem haja João Lima!

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  3. Agora sim fiquei com uma lágrima aqui ao canto do olho...Lindo Anabela que belo relato a sério...Adorei. Vocês são lindos!!! Abraço e beijos e tudo de bom...Muitos e bons klms!

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    1. Vocês são demais... Já disse e repito: além da medalha que ganhamos quando terminamos as nossas provas, acredita que ter pessoas como tu a ler estas "conversas de café" é a segunda medalha que recebo!
      Beijinhos e obrigada por estares aí!

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  4. Por aqui temos outra vez choradeira pegada....este é mesmo o último sobre esta aventura não é? ...é que estou seco e não aguento mais :)
    O que queres que te diga mais, porra...sei lá...tudo lindo, o antes, o durante, o depois, o depois do depois....uma maravilhosa, fantástica e espectacular aventura digna de um filme...vocês os dois estão de Mega, Hiper Super de Parabéns....são um exemplo e inspiração para mim, acredita...já disse mas volto a dizer...são estes exemplos que fazem pessoas normais como eu acreditar nos sonhos...um dia tb eu irei ter a uma aventura destas.
    Beijinho grande para ti, um forte abraço para o Paul Michel, com votos que recupere bem, o mais rapidamente possível.

    P.S.1 - não sentes nenhuma picada no baço ou no fígado? Estou a rebentar de inveja (da boa)...já não bastava toda a aventura...agora ver o Marco Olmo em carne e osso e tirar uma foto contigo???.....diz-me que é uma montagem, diz-me...ahhhhhhhhhrrrggggg. Amuei.

    P.S.2....já estou com pena dos vossos filhos e netos :) .....vão levar com esta durante toda a vida...já estou a ver...aniversários, natal, páscoa, jantar anual comemorativo da MDS 2014 (olha que ideia boa, não?)....e a MDS isto, e a MDS aquilo....hehehehe...coitados :)

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    1. Qual chorar qual quê?... Mas que coisa!! Vê lá as nossas caras! Nós estamos felizes! É só olhar para as fotos e ver os nossos sorrisos. Vá…
      Carlos, por isso eu digo que a maior vitória não foi fazer a prova e terminá-la, isso foi “apenas” a medalha. A maior vitória foi acreditar que era possível e virar a vida do avesso para concretizar esse sonho. Quando o Paulo dizia que queria fazer a MDS muitas pessoas lhe perguntavam: “mas não podias ir fazer uma coisa mais acessível, mais fácil?” Claro que podia. Mas porque é que não podemos sonhar alto? Só os dotados é que o podem? O comum dos mortais não pode ter a audácia de querer chegar lá? Esta aventura não tem truque nenhum, Carlos. Já nos conheces e sabes bem que nenhum de nós é super-herói ou super-heróina: ele lutou por um sonho e eu só lhe criei as condições para ele o alcançar. Apenas isso, nada mais. Trabalho de equipa.
      Por isso, meu amigo, contigo é igual: se tu queres, tu consegues!

      P.S. – Vamos ser uns velhos jarretas impossíveis de aturar, sim…

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    2. E o Marco Olmo?? Vivinho e a cores! :)) Pimbas! :P

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  5. Brutalíssimo!

    Mais uma vez muitos parabéns ao Paul Michel e a ti.

    Muito obrigado pela partilha :)

    Bjs

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    1. Obrigada! E obrigada pelo apoio ao longo da prova! Foi fundamental, já aqui o disse, mas nunca é demais repetir!
      Beijinhos

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  6. Depois de ler todos estes posts, a reacção instintiva é googlar o formulário de inscrição na MDS2015. Mais uma vez, parabéns pela excelente, motivadora e emocionante participação nessa grande Aventura.
    Sem vos conhecer, mas com sentimento próximo, dou-vos daqui o meu abraço de admiração (e inveja, ah, pois...) por tudo o que vos levou a adquirir o direito de estafar os netos com a história da MDS2014.
    Parabéns! E não estranhem se um desconhecido vos oferecer uma vénia (e não flores... ;-) ) numa prova qualquer, em que nos cruzemos por aí.

    Força para a recuperação!

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    1. Olá Rogério, se quiseres fazer a MDS podes contar com toda a nossa ajuda e apoio. Em material, por exemplo, vendemos tudo em 2ª mão mas em muito mau estado e muito mal cheiroso!!! Mesmo com duas lavagens aquele cheiro pestilento ainda não saiu... :))
      Deixa lá a vénia e dá-nos antes um abraço! Quem tem de fazer a vénia sou eu, porque tive desconhecidos a apoiarem-me e a enviarem mensagens de coragem que muito me ajudaram.
      E caso nos encontres numa prova não hesites. Procura a t-shirt do sapatinho com asas!

      Recebe outro forte abraço e a minha gratidão pelo teu entusiasmo.

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  7. Mais uma vez parabéns ao Guerreiro Paulo e também para você neste desafio feito para gente grande!!
    Grande abraço.

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    1. Obrigada Jorge! Grande, grande abraço para si! Essa sua força chegou cá e lá!

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  8. Ainda não me consegui chegar a um computador onde possa ver o vídeo mas até é preferível se não ainda vou a correr ver as inscrições da mds 2015!
    As fotos, os comentários, a cumplicidade latente e evidente são inspiradoras, o resto e restante já foi dito.
    Uma inspiração.
    Bem hajam.
    Bjs e abraços

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    1. Já disse: quem quiser arriscar a MDS 2015 tem aqui dois entusiastas e apoiantes. Oferecemos material, damos dicas, traçamos estratégias e tudo isto pela módica quantia de... Estou a brincar!! :))))
      Obrigada e beijinhos

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    2. ahahaha, já vi o clip:)
      Garanto-te que a mds não está de todo ( e por agora porque nunca digo nunca) nos planos e ou escolhas mas em todo o resto acredita que, como já escrevi, vocês têm sido inspiradores ;)
      E sim, o raio da musica tem o condão de me pôr sempre um sorriso nos lábios (acho que até na versão benfica 2013).
      Bjs

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  9. Mas que relato! Fiquei literalmente presa ao computador. Muitos parabéns ao Paul Michel, são mais do que merecidos depois de todo o esforço! :) Venham mais desafios! Beijinhos

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    1. Obrigada Fiona! Um beijinho grande, grande para ti!
      E haja pernas para enfrentar desafios ;)

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