25 de agosto de 2013

O chefe dos conquistadores do inútil

Paulo Pires, o Mister, deu-se a conhecer em entrevista ao Diário de Notícias. Transmitiu o que é treinar gente que gosta de ter a ousadia de, todos os dias, ultrapassar os seus limites.




Paulo Pires, professor de Educação Física, é o treinador por detrás do sucesso dos ultrarunners portugueses. Com um computador, uma ligação à internet e um plano de treino personalizado, é ele que os ajuda a ir mais longe.

Não há atletas sem treino nem treino sem treinadores. Os ultrarunners portugueses são dirigidos por Paulo Pires, nascido em Angola há 43 anos, homem dos grandes espaços como se diz serem todos os africanos, e que chegou às ultramaratonas vindo do montanhismo e do alpinismo.

«Costumo dizer que somos os conquistadores do inútil», diz este professor de Educação Física em Vagos e formado na Universidade do Porto, que insistia em dizer que neste desporto não havia glamour nem prémios. «Mas somos fazedores de desafios épicos.»

Paulo Pires não é um treinador como os outros. Não está com os seus atletas todos os dias. «Grande parte do treino é ao computador. Todas as semanas lhes faço o programa de treinos e embora os relógios sejam quase computadores que registam tudo, se não quiserem fazer não fazem. É preciso querer mesmo e esta gente normalmente quer. E muito.»

«Quando, há cinco ou seis anos, o meu amigo Carlos Sá, com quem fazia montanhismo, me pediu para lhe arranjar uns planos de treinos para corridas em montanha de oitenta quilómetros chamei-lhe maluco. Mas fui estudar e basicamente o que fiz foi arranjar uma nova metodologia de treino através dos relógios, que são PTC [personal training computers]. Eles treinam, chegam a casa e descarregam no computador os dados e aquilo dá tudo. E eu, em casa, controlo tudo. Sou o Big Brother deles.» Por isso, desenvolver novo software com empresas interessadas é um dos objetivos a curto prazo, porque Paulo precisa de mais dados que é possível extrair desses minicomputadores-relógios.

«A minha experiência profissional como treinador, os conhecimentos e a experiência de 15 anos de montanhismo e alpinismo, a formação continua na área do treino, da montanha, da nutrição e das lesões desportivas permitem-me ter uma visão muito abrangente e pragmática do treino de ultra trail

Em princípio, a definição de ultra runner ou ultra trailer é o de fazer corridas maiores do que a maratona e muitas vezes em montanha - corridas de cem e duzentos quilómetros pelos sítios mais incríveis. E geralmente sem prémios monetários. «O Carlos Sá conseguiu patrocinadores, a Sport Zone e a Berg, é até consultor deles para os produtos, mas os outros não, tiram disto apenas a satisfação própria da superação dos limites.» E há filosofia, claro: «Quem entra nisto comigo tem outros valores, procura outro sentido para a vida ligado à preservação da natureza e à própria superação e resiliência.»

E, perante tais desafios de teste às capacidades do corpo humano, é legítimo perguntar: e doping? A resposta é clara. «Quem vem do montanhismo não quer nada disso. Já quem vem do ciclismo muitas vezes acha que tomar remédios ajuda para qualquer coisa. Mas nós tiramos-lhes essas ideias.»

Carlos Sá é o mais mediático dos seus atletas. «Fazer dele o mais completo corredor de ultra trail era o grande projeto mediático deste ano e está conseguido, ninguém no mundo faz como ele estrada e montanha.» Paulo Pires tem também um lado de marketing bem vincado: «Há que encontrar formas mediáticas de chamar a atenção para isto. A ideia do corredor mais completo também foi isso.» E pelo meio, claro, é preciso garantir o necessário e merecido descanso do atleta. «A recuperação de provas como Badwater é terrível.»

A ajuda do Laboratório de Biomecânica da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto tem-se revelado essencial. É lá que alguns dos atletas treinados por Paulo Pires fazem testes com maquinaria que mede as capacidades todas do ser humano. Na prática, é uma equipa pluridisciplinar a garantir o sucesso de estrelas promissoras. Profissionais como os médicos António Castro e Cunha, as fisiatras Maria Cunha e Rita Tomás, o meteorologista Vítor Baía, da Guarda, e alguns amigos do Clube de Montanhismo da Guarda e dos Amigos da Montanha, de Barcelos, contribuem para que os atletas de Paulo Pires se tornem mais completos.

Paulo recorda as primeiras corridas em que ninguém conhecia os portugueses e Carlos Sá e companhia apareceram logo nos primeiros lugares. Lembra o primeiro Ultra Trail du Mont-Blanc, na Suíça, que passou a ser o campeonato do mundo. Tudo sinais de que os métodos de treino que tinha seguido estavam certos - e não há nada mais importante do que isso para um treinador. Hoje é regularmente convidado para palestras internacionais para explicar os seus métodos. «Não somos profissionais disto, mas a atitude é de profissionais.»

Preparar uma prova de cem quilómetros, que pode durar 12 horas sob climas rigorosos na montanha está muito longe de se resumir ao treino físico. É preciso ter atenção a tudo o que se leva - os mantimentos, o peso das mochilas, o tipo de agasalhos que é preciso ou não levar.

«Aqui há tempos. Numa prova importante, um dos atletas telefonou-me às quatro da manhã. Que ia desistir, que não podia. Que tinha feito tudo bem, mas não podia. Lá estive a conversar com ele um bocado e o que se tinha passado era que ele não tinha levado os agasalhos corretos e o corpo não aguentou», conta o treinador. Preparar Badwater, que Carlos Sá ganhou recentemente na Califórnia, a mais dura de todas as provas, envolve muitas valências. Quando fomos ao Aconcágua, na Argentina, chegámos com umas mochilas e era essencial o apoio local do exército e da policia de resgate. Quando chegámos, olharam para nós e perguntaram onde estava o apoio. Claro que éramos só os dois. Quando o Sá fez o tempo recorde de 15h42, menos cinco horas do que o máximo anterior, ficaram com um respeito por nós...»

Paulo vive com a médica Maria Cunha, vão casar e estão a pensar ter filhos, mas as corridas não ajudam muito. Entre as aulas na escola e o computador para preparar os treinos dos atletas, mais as provas, não sobra muito tempo. Tem 17 ultramaratonistas a cargo «e metade luta pelo Top 10 em qualquer prova internacional.» Os outros? «Ainda ontem disse ao Carlos Sá: para mim tu não ganhaste a Badwater, tu foste o que sobreviveste melhor àquelas condições terríveis. Fazer corridas destas e chegar ao fim é uma vitória, sempre. O Sá e muitos dos outros estrangeiros e portugueses muitas vezes param para ajudar os adversários, para lhes dar ânimo. Mesmo em grandes provas.»

Paulo Pires confessa que alguns atletas pagam qualquer coisa, outros não. Sabe que tem uma legião de fãs espalhados pelo país que o convidam, a ele, a Carlos Sá e aos outros para jantar, para estar com eles umas horas, porque são ídolos desse grupo dos ultra runners amadores. Na semana passada fez um estágio com vários atletas na serra da Estrela: foi em parque de campismo, cada um paga a sua despesa. É comunhão com a natureza. «No fim de uma ultra , o importante é estarmos todos, de objetivo atingido e em condições físicas para voltar a casa, às famílias, ao trabalho... e a sonhar com o próximo desafio.»

Carlos Sá, a grande estrela de Paulo Pires, não tem dúvidas: «Um treinador e um atleta estão sempre em campos um bocado diferentes. O Paulo quer tudo direito, claro, mas sabe guiar-nos e compreender que boa parte disto não é competição a não ser connosco próprios. Que não é pelo dinheiro nem pelo reconhecimento público, é mesmo só por nós e pela superação dos limites, Uma das grandes qualidades dele é essa, é ter este espírito.»

(A notícia na íntegra pode ser lida aqui).

4 comentários:

  1. Por trás de um grande atleta está sempre um staff (pequeno ou grande), (muito) menos visível mas de igual importância. Nesse staff o destaque é para o Treinador, neste caso o "Mister".
    Muitos parabéns ao Paulo Pires, que continue o bom trabalho, não só com o Carlos Sá mas com os outros atletas de grande valia neste desporto que estão a começar a aparecer em Portugal....temos aí uma bela fornada, que se fosse devidamente apoiada com certeza faria uns brilharetes por esse mundo fora.
    Beijinhos para ti e uma grande abraço para o "Mister"

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    1. Falaste num ponto importante Carlos: os apoios a estes atletas... Quase nenhuns e para alguns só mesmo a sua vontade, "loucura" e ambição em fazer algo que gostam. Só assim continuam a subir vales e montes.
      Mais do que o Carlos Sá, indubitavelmente uma referência, existem já vários ilustres desconhecidos, treinados pelo Paulo Pires e não só, que merecem toda a nossa admiração. Basta olhar para a lista de participantes portugueses deste ano na UTMB!
      Beijinhos e bons treinos!

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  2. Gosto de correr. Até faço a Maratona em estrada. Mas não consigo ainda perceber o que faz esta gente suportar tamanhos sacrificios...excelente artigo!

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    1. Compreendo, Paulo! Por vezes, também me questiono.
      Por isso acho que a expressão "conquistadores do inútil" não podia ser mais apropriada...
      Quando se chega ao topo de um montanha, ou à meta depois de centenas de quilómetros percorridos, muitas vezes em condições quase sub-humanas, nos perguntamos: e então?!
      Boas corridas!

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