- “Estás onde? Vem buscar-me. Estou em Col de Sencours e vou
ficar aqui. Não dá. Não consigo. As pernas não andam e a cabeça não responde.”
- “Tens a certeza? O que é que se passa contigo?”
- “Epá, não sei. Hoje algo não está bem. Não quero isto. Não
quero estar aqui. Quero ir-me embora. Vem buscar-me, está bem?”
- “Está bem.”
Esta foi a nossa conversa ao telefone, lembras-te? Assim que
desliguei o telemóvel só me apetecia chamar-te nomes. Olhei para o teu filho e
pensei: “o que é que agora lhe vou dizer?” Não estás a imaginar a cara do teu
filho quando lhe disse. Ele só sabia perguntar “porquê?” e eu sem saber o que
lhe dizer. Teria sido mais fácil dizer-lhe que estavas magoado. Mas não.
Tiveste um motivo daqueles esotéricos. Que não dá para encaixar na cabeça duma criança
de 9 anos.
Depois de teres feito tudo o que fizeste até aqui, depois de
mostrares a muita gente como se luta para alcançar objetivos (mesmo não sendo
fisicamente dotado para isso…) a ti não te é permitido fracassar desta maneira.
Tiveste um chelique na cabeça? A sério?! Isso é coisa de meninos, Paul Michel!
Tu nunca tiveste uma cena dessas. Se há coisa em que és forte é na cabeça.
Focas-te no objetivo e não há quem te mova um centímetro.
Naquele dia não. Foste uma menina. “As pernas não andam e a cabeça não responde”… Bolas, que conversa é
esta, pá? Nunca tal coisa acreditei vir a ouvir da tua boca. Muito menos na
prova onde, pela primeira vez, o teu filho e a tua mulher te vão apoiar. Lindo
serviço, sim senhora…
Treinaste como um profissional. Abdicaste de tempo com a
família, de tempo com os amigos. Evitaste a vida social, o convívio das férias
de verão para que nada pusesse em risco a tua prestação. E chega-se ao dia e… “As pernas não andam e a cabeça não responde”.
Várias pessoas me perguntaram o que se tinha passado. Todos
acharam que te tinhas lesionado (um queda, seria o mais provável). Desistir aos
38km numa prova de 160km só por um grande azar. Mas não... Quando pediam a
minha confirmação do óbvio (“ele caiu, foi?”) a minha resposta era o mais tonta
possível: “não, não caiu… Diz que não consegue…” Muito bom! Ficava um silêncio
ensurdecedor entre mim e a pessoa do outro lado da linha.
Isto foi no dia. Foi assim que me senti, Paul Michel. Defraudada,
quase enganada. Revoltada e, durante algum tempo, irritada e furiosa contigo.
Afinal de contas, tanto treino, tanta estratégia, tanta logística, tanto
planeamento, tanta coisa, para no dia… “As
pernas não andam e a cabeça não responde”.
Se fosses à merda…
Mas isto foi naquele dia. Naquele dia quase que desejei que
tivesses caído, pois seria mais fácil justificar o injustificável. Não te
entendi, não te compreendi. Não reconhecia o super-herói que sempre admirei muito
mais pela tua dedicação e trabalho e muito menos pelos teus resultados.
Também quero que saibas como me senti. Também tens de
perceber que para mim não foi fácil. Não foi fácil gerir toda a tensão daquele
momento ainda p’ra mais com um miúdo de 9 anos ali ao meu lado. Não tens ideia
do que foi a minha viagem de Hautacam até ao Col du Tourmalet. A disfarçar as
lágrimas pela cara abaixo sem que o garoto percebesse. Ao mesmo tempo olhava
pelo espelho retrovisor e via-o a choramingar. Nem acreditava que aquilo me, ou
melhor, nos estava a acontecer.
Quando te vi no Col du Tourmalet tive um misto de sensações:
raiva e pena. Não sabia o que te dizer. Aliás, ainda tive dúvidas se havia de
te bater. Juro. Entraste no carro e nem um beijo ou abraço te dei. Arranquei
dali rumo ao hotel. O filho dormia. Era um dia para apagar da memória. Era um
dia para esquecer. Ou não…
Hoje, aqui sentada a escrever-te, já tenho discernimento suficiente para analisar toda aquela situação e peço-te desculpa por tudo o que pensei na altura. Hoje reconheço o quão injusta e dura fui contigo, ainda que só em pensamentos. Naquele dia deste-me uma grande lição. A mim, a ti e ao nosso filho. Daqui a uns bons anos, tenho a certeza
que ele se lembrará daquele dia e do que aprendeu.
Aprendeu que afinal os gigantes também caem.
Aprendeu que o seu super-herói também tem fraquezas
emocionais.
Aprendeu que depois de uma derrota é tempo para repensar o
futuro.
Aprendeu que a cabeça é o nosso maior e mais forte músculo.
Aprendeu que não são as pernas que sobem montanhas, mas sim
o coração.
Aprendeu a esperar horas no topo do monte agarrado a uma
bandeira.
Aprendeu que horas de trabalho e esforço nem sempre se
traduzem em vitórias.
Aprendeu que as frustrações e os fracassos nos ensinam mais que as glórias e os troféus.
Aprendeu que chorar lava a alma.
Aprendeu ele… E aprendi eu.
Obrigada "Urso Velho"
O filho à espera do pai