Depois da brilhante etapa dos 81,5km e depois de várias
pessoas partilharem e comentarem o vídeo da chegada do Paul Michel já era perto
da uma da manhã quando me fui deitar, muito feliz por sinal, pois no dia
seguinte apanharia avião para Marrocos rumo à meta da MDS para fazer uma surpresa ao Paul
Michel.
Desde janeiro que andei a preparar esta surpresa. Os
contactos com a organização não foram fáceis, pois nunca me respondiam. Até que me lembrei de uma conversa com o JoãoLima na corrida do Monge. Ele disse-nos que conhecia o único português que
fazia parte da organização: Mário Machado. Caso precisássemos de contactá-lo
estaríamos à vontade. Arrisquei. E foi o Mário Machado quem me deu os contactos
(nome e email direto) da pessoa da organização a quem eu deveria colocar todas
as questões. Depois disto tudo foi mais fácil.
E consegui! Em Março tinha tudo organizado e planeado para
estar 6ª feira, dia da última etapa, à espera dele.
Quinta-feira foi o dia de descanso após a maior e decisiva etapa dos
81,5km e nesse dia eu estaria a voar Lisboa-Casablanca-Ouarzazate. Cheguei às
duas da manhã ao hotel, em Ouarzazate, e levantei-me às cinco da manhã (dormi
duas horas, nessa noite a ansiedade não me deixava adormecer). A viagem de
Ouarzazate até ao deserto era de quatro horas de jipe. Por isso tivemos de nos
levantar muito cedo. E cedo o grupo, de aproximadamente 50 pessoas (entre
patrocinadores e familiares) se reuniu e logo ali começámos a conversar uns com
os outros. A viagem até ao deserto não me pareceu assim tão longa. Aquelas
quatro horas significaram talvez duas. A vontade de chegar era muita.
Os nossos jipes
Não é uma Yamaha nem uma Kawasaki
O Areias a fazer gracinhas. Este bicho bebe pela garrafa.
Passámos por povoações onde o cenário típico de probreza e miséria faziam com que não nos apetecesse sair do carro.
Quase a chegar ao CP3 entramos num trilho e aí sim: sentimos que fazíamos uma prova de todo-terreno. Além disso, o nosso motorista era daqueles que adorava a sua profissão. Leva-a muito a sério e com grande empenho. Aquilo era prego a fundo a toda a hora. Neste trilho avistamos os primeiros atletas. Ficámos excitadíssimos e sempre a tentar perceber se era algum dos nossos familiares ou amigos.
O programa previa uma passagem rápida no CP3, o último
controlo da última etapa. Assim que lá chegámos quem é que eu vejo? Um
português. Mas não era um atleta. Era precisamente Mário Machado. Podia estar
em qualquer CP, mas por sorte foi logo estar naquele. Percebo que ele tenta
avistar-me. Mas nesse momento chegavam vários atletas e ele tinha de estar
concentrado a registá-los. Mas tudo muda quando abano a bandeira portuguesa!
Entrega o controlo a quem lá estava e vem em minha direção (eu acho que vocês percebem
o que é para um qualquer português estar longe de casa por vários dias e ver a
sua bandeira…). Dá-me um abraço muito rápido, ou melhor eu abraço-o porque ele
só me diz: “não me abrace que eu estou
muito sujo!” Mas quem é que se importa com isso? Venham de lá esses ossos!
Cumprimenta-me, trocamos duas ou três palavras e rapidamente volta ao seu posto
de controlo.
Neste entretanto, estão sempre as passar atletas. Como esta
última etapa teve duas partidas diferentes (o TOP 50 saiu 1h30m mais tarde) os atletas
começam a chegar misturados. E eis senão quando quem vem lá??? O Carlos Sá!
Fico tão nervosa que nem consigo fotografá-lo. Só consegui gritar por ele - histérica - abanar a bandeira e ele apenas olhou para mim com cara de
bicho selvagem. Não sorriu nem esboçou qualquer expressão. Impressionou-me a
concentração dele. Nem uma ruga de felicidade nem tristeza por me ver. Ou
melhor, foi como se não me tivesse visto. Olhou para mim como se tivesse olhado
para uma pedra. E saiu a correr. A correr muito. Muito mesmo.
Começa o meu coração a bater mais rápido. Começam os outros
elementos do grupo a encontrar os seus familiares e gera-se ali uma onde de
emoção muito forte. Choravam os atletas que viam os seus familiares, chorávamos
nós que os víamos a chorar… Uma emoção muito grande ver estes reencontros. E eu
a pensar quando é que seria o meu momento. Tinha planeado esconder-me quando o
Paul Michel passasse, pois queria apenas que ele me visse na meta.
Depois do Sá vi passar muitos atletas de elite: os
marroquinos, Marco Olmo, a Lawrence Klein (a atleta feminina que costuma ganhar
a prova) e muitos outros. Nem vinte minutos tinham passado quando aparece o
Carlos Coelho. Aqui sim, já houve festa! Abanei a bandeira, gritei por ele e
ele veio na minha direção e sorriu-me. Desejei-lhe a maior força e disse-lhe que iria
estar na meta à espera deles.
Carlos Coelho
O marroquino que ganhou este ano.
O marroquino que ganhou o ano passado
Tenho ainda tempo para lhe perguntar: “o Paul Michel vem atrás,
não é?” – NÃO! JÁ PASSOU!
Neste momento desaba sobre mim o mundo. Então ele já tinha
passado? Não é possível. Ele não estava a correr assim tão rápido... As médias
dele não permitiam que ele já tivesse passado naquele controlo. O que é que
faço? Ele já passou e eu estou aqui?… Gera-se em mim uma fúria e
um misto de frustração e começo aos gritos à procura do marroquino responsável
pelo nosso grupo. Encontro-o ao fim de dez minutos e começo a implorar-lhe que
me leve à meta. Ele diz-me que não é possível, que só podemos ir quando o grupo
seguir todo junto. Começo a chorar e aos gritos. Digo-lhe que paguei
para esperar o meu marido na meta e não para estar num controlo a ver os outros
passar!
Agarro-me a ele (com alguma violência, até) e começo a
gritar-lhe e a oferecer-lhe dinheiro para ele me levar à meta. Neste momento
tudo muda! Diz-me que me levava mas que teria de arranjar mais três pessoas do
grupo para ir comigo, pois o jipe teria de ir cheio, caso contrário depois não
teria lugares para levar todas as pessoas até à meta. Lembrei-me de duas
francesas e uma inglesa que tinham visto os seus familiares a passar no CP3.
Perguntei-lhes se queriam vir comigo e disseram logo que sim.
Vou a correr para o marroquino e digo-lhe que já tenho as
três pessoas para encher o jipe. Ele diz-me que vai chamar o motorista para nos
levar. O motorista tinha desaparecido. Eu começo à procura do marroquino. O
marroquino continua à procura do motorista. Começo a gritar-lhe desesperada a
implorar para me tirar dali. Olho para a francesa e peço-lhe um cigarro. Fumo
um cigarro. Continuo à procura do marroquino e do motorista. Outro marroquino
pergunta-me se não quero ir à tenda almoçar. Mando-o à merda (em português)!
Começo a falar em português e a disparar as piores palavras que nem sequer
constam do nosso dicionário. A francesa tentava acalmar-me. Aparece o
marroquino e logo de seguida o motorista. Entramos no carro. Digo-lhe que lhe
dou 100 dirham se ele conduzir rápido mas em segurança. O percurso até à meta
era de vinte minutos. Ligo para o Mister e pergunto-lhe a que horas ele tinha
passado no CP3 (para fazer contas e tentar perceber se ainda teria tempo de o
apanhar a chegar) e ele responde-me: “o
teu homem já chegou à meta…” Aqui é que o mundo desabou.
Fico emocionalmente descontrolada.
Todos me tentam acalmar. O motorista para o carro sem perceber o que se estava
a passar. Grito-lhe outra vez para continuar a conduzir sem parar. Cinco
minutos depois chego ao Bivouac. Corro para junto da zona da meta. Olho e não
vejo nada. Vejo tanta gente e não vejo ninguém. Começo a gritar por ele. Não oiço resposta. Corro
para junto da organização e pergunto onde estão os atletas que já terminaram. Indicam-me
a tenda (era uma tenda onde os atletas podiam repousar e estar com os
convidados, imprensa, patrocinadores, familiares). Entro lá e só vejo o Carlos
Sá sentado a relaxar. Desta vez era eu que devia estar com olhar de bicho.
Agarrei-me a ele, mas nem lhe dei os parabéns. Só lhe perguntei: o Paulo? E ele responde-me: já foi para a tenda, mas tem cuidado que não
podes ir lá e a organização é muito rígida. Não arrisques.
Disse-lhe: vai lá
chamá-lo. Diz-lhe para vir aqui. Diz-lhe que a organização está a chamá-lo. Agora,
à distância sei que pedi quase o impossível ao Sá. Ele tinha acabado de fazer
uma etapa fantástica, muito dura, estava ali a descansar, sentado e a hidratar…
E eu peço-lhe para se levantar para ir chamá-lo e rápido!! Ele nem me respondeu.
Sorriu, sem me dizer anda, levantou-se, pegou nas coisas dele e foi. Muito
devagarinho, a andar, foi.
Enquanto esperava olhava para quem já tinha terminado. Olhava para os pés.
Levei para esta aventura um boné diferente, óculos de sol
diferentes e um lenço na cabeça para que ele não me reconhecesse com tanta
facilidade. Não esperei sequer três minutos quando o vejo ao longe com a
bandeira portuguesa atada à cintura. Tiro a minha bandeira e levanto os braços.
Ele para e fica a olhar uns breves segundos. Percebe que sou eu e nesse momento
começamos a correr na direção um do outro.
E agora? O que é que querem que eu vos conte mais? Foi o
reencontro que acho que também podem imaginar…
O Paulo chorou com um misto de felicidade, alegria,
conquista, mas ao mesmo tempo queixume. Não foi SÓ um chorar de alegria. Foi
também um chorar de alguém muito sofrido. De um sofrimento que depois se traduz
na maior das alegrias. Parece paradoxal mas quem corre sabe do que falo. Como é que alguém que sofreu tanto, pode estar tão feliz?
PODE! PODE MESMO!
E se a felicidade tivesse um nome próprio,
nesse dia era Paulo Reis, dorsal 1113.
A última etapa do Paulo foi alucinante,
ficou em 90º lugar da geral. Foi o tudo por tudo. Naquele dia, acordou de manhã
e esqueceu tudo: as dores, a fome (muita fome!) e o cansaço. Foi faca nos
dentes e SIGA até à meta.
Perguntou-me pelos filhos e disse-me que a sua maior
motivação era a chegada aos CP. Quando lá chegava pensava: ela já sabe que cheguei aqui, já não vai ficar preocupada. E assim
sucessivamente até à meta onde mandava sempre três beijinhos.
Foi um resto de dia de muitas emoções. Falou-me da importância
das mensagens que recebeu. Disse-me que tem mensagens inesquecíveis. Guardou-as
todas.
Mostrou-me os seus pés como um veterano de guerra orgulhosamente mostra as suas cicatrizes das balas. Tinha várias bolhas, todas elas rebentadas e que agora estavam em ferida. Ainda assim, para o que vi por lá, acho que os pés dele até estavam muito bem.
À noite foram entregues os prémios pelas diversas categorias.
E lá estava a nossa bandeira tão bem representada! Junto de um atleta que nos
orgulha e que merece a nossa admiração. Melhor europeu em prova! 4º lugar da
geral.
Para terminar fomos brindados com um concerto da Filarmónica
de Paris. Que não vimos nem ouvimos.
Todos estavam exaustos. Todos foram dormir. Inclusive eu. Parecia que tinha
levado uma tareia.
Amanhã é dia de fazer a última e derradeira etapa. Não cronometrada
mas obrigatória: a etapa de 7,7km pela UNICEF. Amanhã teremos mais tempo para conversar e saber como foi cada etapa. Hoje o dia é para viver o momento e falar pouco. Mas amanhã quero saber tudo! Como te sentiste? Foi mais difícil do que esperavas? O que é que te marcou mais?
Até amanhã…
Momentos do dia: 6ª feira, 11 abril @ MDS
O meu disfarce
CP3 da última etapa
Grande Pedro Gonçalves!
O medalha de prata: o do lado direito, portanto... :)
Improvisam-se polainas.
Grande João Colaço
O meu bivouac
O meu WC
A minha companheira de tenda
Chá, café, laranjada?
Não. Pode ser uma cerveja fresquinha!
Qualquer lugar é lugar de culto.
Zona de lava e cura pés
Sempre a fazer charme às garotas...
Hora do banho. Fofinhos :)))