Aquele era o meu dia.
...
Acordo às 3h30m da manhã. Uma noite muito mal dormida.
Apesar de ter ido para a cama às oito da noite creio ter dormido apenas uma
hora. Duas horas se tanto. Toda a noite rodopiei na cama. Ora pensava no Paul
Michel, que se encontrava em prova, com os restantes amigos, ora pensava na
minha prova que estava prestes a começar.
Quando o despertador toca foi como se uma dor de barriga se
apoderasse de mim a querer dizer-me: “não
vás, dói-te a barriga e dormiste mal. Lembras-te que no Ultra Trail Douro e
Paiva, onde desististe, também dormiste mal…” Depressa comecei a vestir-me e a tomar o
pequeno-almoço. Tinha tudo pronto de véspera: bastões, mochila com material
obrigatório, reserva alimentar, mini-farmácia, roupa (impermeável, t-shirt
térmica), etc.. Ia carregada que nem um burro. Mas ia segura. Tinha tudo o que
poderia necessitar.
Saio de casa sozinha, sem ninguém. Costumo sair sempre com o
Paul Michel. Naquele dia estava por minha conta. Era de noite. Caminhava
sozinha pelas artérias de Chamonix e não via ninguém. Costumo ir
sempre na risota e na brincadeira para as provas. Desta vez ia com ar sério,
mas ao mesmo tempo sereno. Perguntava a mim própria: será que hoje é o meu dia?
Ó faxabôr, algum outro Deus me pode dizer algo?! Já que o meu parece que amarrou o burro? O meu Deus às vezes
faz-me destas. Quando preciso dele com urgência diz-me que está ocupado. Bom,
se pelo menos estiver ocupado com o Paul Michel e os meus amigos que já estão
em prova, menos mal…
Entro no autocarro que me levará ao meu destino e começo a
sentir-me tranquila. Acomodo-me de forma a ir o mais confortável possível.
Lembro-me das palavras do Mister: “leva
roupa confortável, tipo um fato de treino quentinho, tens pelo menos uma hora
de caminho, aproveita para dormir”. Dormir?... Quem é que conseguia dormir?
Perto das cinco e meia da manhã toca o meu telemóvel. Era o
Paul Michel: “não queria que saísses sem
saber que estou bem, mas ainda me faltam umas quatro horas para chegar à meta.
Só te quero dizer uma coisa: nunca ponhas a tua vida em risco. Se tiveres de o
fazer desiste desta merda”. Desistir? Ele falou em desistir quando eu ainda
nem sequer comecei? Eu precisava ouvir tudo, naquele momento, menos aquele
discurso tão derrotista. Percebi logo que o estado de alma dele não era o mesmo
aquando da Marathon des Sables. Percebi que aquela prova estava a ser um
suplício e que ele só a queria acabar. E desta vez sem sorriso no rosto (o que se veio a confirmar mais tarde).
Chego ao destino e encontro-me com o meu amigo Paulo Soares,
que iria fazer também a prova comigo. Antes de partir ainda há tempo de falar
com a Ana. Sim, com a Ana. Nesse momento, ainda soube por ela que o Paul Michel
estava em bom ritmo até à meta. Confesso, que senti uma pontinha de
inveja. Já está, tu já conseguiste, mas eu ainda nem sequer parti. A Ana
diz-me: “olha, eu sei que tu não sabes,
mas eu sei que vais conseguir. É que sei mesmo!”
Pois… Pelos visto parece que todos sabem, menos eu…
Naqueles minutos prévios à partida o ambiente que se vive é
de festa. E que festa. As pessoas abanam os chocalhos e batem palmas. Vibram com
aquela festa. Recordo que a minha prova, a OCC, realizou-se este ano pela
primeira vez. A vila escolhida para a partida, Orsiéres, estava ao rubro. Os
habitantes estavam orgulhosos de nos receber. Havia imensas crianças.
Pergunto-me se já haveria escola ou se nesse dia houve dispensa para ir apoiar
os atletas (não me admirava nada). O speaker entusiasmava-nos, as pessoas
batiam palmas, pediam-nos para acenar com os braços para tirarem fotos, um
drone sobrevoava as nossas cabeças… E os chocalhos abanavam
parecendo sinos de igrejas. É a loucura!
Estava dada a partida. Atravessámos as ruelas de Orsiéres
debaixo de um som estridente: gritos, palmas, chocalhos, cartazes, fotógrafos…
Meu Deus, que festa! Todos gritavam: allez, allez!!! Bom courage!! (Ainda hoje oiço as vozes,
acreditem…) Por duas vezes tive a sorte de ouvir: allez jeune fille du
Portugal, allez!! E o mais curioso é que ouvi umas duas ou três vezes alguém
comentar: regardent, ils sont de Portugal (emigrantes, talvez, espantados por
nos verem ali). Enfim, somos os maiores!
A prova começou e começou… A subir! Mesmo dentro da vila o
percurso foi sempre a subir. As crianças ficam loucas. Algumas levam cartazes
feitos por elas. Um grupo de pessoas deu-se ao trabalho de fazer um mega-cartaz
com todas as bandeiras participantes. Ainda pensei para mim: “somos só meia dúzia, não devem ter posto lá
a nossa…” Pois enganas-te, menina. Estava lá a nossa bandeira.
Começamos a correr e começo a sentir calor. Ao fim de
3km tive de despir o impermeável. Pouco depois afunilamos numa subida e
perdemos ali vários minutos. Ficamos parados o que nos permitiu conhecer mais dois
portugueses que até à data não sabíamos quem eram. Eram dois jovens
portugueses residentes na Suíça. Emigraram há quatro anos em busca de uma vida
melhor. Trocámos algumas palavras e pouco tempo depois eles seguiram à nossa
frente.
Nesta altura digo ao Paulo Soares: “vai à tua vida, moço. Não esperes por mim, já sabes que sou lenta.
Esperas por mim na meta, pode ser?” Ao que ele me responde, nas suas sempre
poucas palavras: “eu não estou com pressa
para acabar isto. Além disso vou a gerir o esforço”. Fiquei desconfiada da
sua estratégia. Ele corre para chúchú e agora vai aqui armado em ama-seca…
Hummm…
Percorridos 7km chegamos ao primeiro abastecimento.
Hidratámos bem e enchemos os depósitos das mochilas e seguimos viagem. Creio
que estivemos ali uns três ou quatro minutos, não mais. Sentia-me bem.
Sentia-me bem disposta, alegre, contente e confiante que hoje poderia ser o meu
dia. O Paulo Soares estava fresquíssimo, mas teimava em não me largar. Eu
percebo, tenho este efeito junto dos homens! Eheheheheheh
Neste abastecimento desconfiei da sua estratégia para a sua
prova: passava tão-somente por não me largar. Ele queria certificar-se que eu
acabava. Hoje tenho quase a certeza que isto foi uma encomenda da mulher, a
Ana. Sim, a Ana.
Ao sair do abastecimento passamos pela parte mais rolante da
prova. Aqui corremos uns bons quilómetros. Entre pequenas subidas e algumas
descidas, pouco acentuadas, conseguimos correr e conversar. A passagem por
Champex é qualquer coisa… É lindo! Maravilhoso! Aqui perdemos vários minutos a
tirar fotos. Uma espanhola ofereceu-se para nos tirar uma foto. E que bem que
ficou.
Ao km13 começa a primeira grande subida. Lembram-se do
gráfico? Não?
Fiz esta subida com muita cautela. Calma e serenamente,
tinha receio de me espatifar à primeira. Chegados ao cimo falta-nos o ar da
paisagem que temos à nossa frente. O dia estava radioso, o sol brindou-nos
sempre com a sua presença. Não podia pedir mais nada, pois não? Estava tudo a
ser perfeito.
Eu vim de lá de baixo
Agora só faltava eu cumprir com a minha parte. Afinal Deus estava
a dar-me aquele sinal. Estava a dar-me tudo: sol, calor, boa disposição, boa
companhia… Agora só faltava correr até à meta. E isso só dependia de mim. E do
anjo da guarda que me acompanhava, o Paulo Soares.
Fiz as subidas a pensar na minha Pampilhosa, na subida dos
eucaliptos, que só tem uns 400m D+, mas onde fiz vários treinos. Subi ao som do
teléc-teléc dos bastões a bater nas pedras e pensava para mim: estás na subida
dos eucaliptos e isto não custa nada. Quando pensava isto olhava para cima e
exclamava: Meu Deus, aquilo lá em cima são pessoas? Parecem pioneses coloridos!
Mas conseguia. Conseguia sempre. Esta já está! Já só faltam mais quatro subidas
destas!
Repito: eu vim de lá de baixo
Em pequena morria de medo das vacas. Hoje andei a correr no meio delas.
Depois de subir, desce-se, não é? Pois as descidas foram
para mim uma surpresa. Contava conseguir correr com mais ritmo, mas parte das
descidas tinham zonas bastante técnicas e aqui eu sou uma naba e por isso nunca
arrisco muito. Descida feita até Trient, o primeiro grande abastecimento. Aqui
tínhamos 24km feitos. Estávamos praticamente a meio da prova (achávamos nós…).
Eu sentia-me fresca e fofa! Estava contente comigo. Aqui, em Trient ao km24 começo
a sentir que hoje poderia ser o meu dia.
Enquanto comia a canja (aqui comi 3 tijelas de canja! Ahhh,
bruta!) pensei que não me sentia nada
cansada, nada fatigada, não me doía nenhum músculo, estava pronta para seguir
viagem. E de cara alegre!
Saímos de Trient rumo ao próximo abastecimento em
Vallorcine. De Trient a Vallorcine tínhamos 11km pela frente, mas… E há sempre
um mas… Nestes 11km enfrentaríamos a maior e mais dura subida da prova. Esta, a
subida até Catogne: dos 700m aos 2200m em 4km.
Nesta subida começo a ultrapassar várias pessoas. Algumas
delas já iam em grande esforço e sofrimento. Lembro-me de duas em particular:
um rapaz que se deitou à sombra e pediu para lhe esticar as pernas, e uma senhora,
na casa dos 50 anos, que me fez lembrar a Anabela na casa dos 30 anos no Ultra
Trail Douro e Paiva: dava um passo e parava. Respirava forte, dava outro passo
e parava.
A meio desta subida lembro-me de pensar no seguinte: se
chegares ao fim desta subida e depois fizeres a descida estás a 18km da meta.
Olhando para o gráfico bem sei que ainda tinha mais subidas para fazer, mas
depois daqui tens 2/3 da prova feita. E se me sentisse bem qual
era o motivo para não chegar ao fim? Siga!
Aqui, neste momento, e pela primeira vez, disse só para mim
num sorriso tímido: “tu vais conseguir,
mulher!” Pela primeira vez, não tive receio de começar a deitar foguetes
antes da festa. Cheguei a Vallorcine com "aquele" meu sorriso. Desci para
Vallorcine com a confiança e a certeza que merecia tudo aquilo e o que mais
Deus me pudesse oferecer. Afinal Ele estava lá.
Cheguei a Vallorcine e tinha amigos meus à espera. O Miguel Catarino
e o Rui Barbosa com as suas famílias. Foi um bálsamo. Encontrar ali as “nossas
gentes” foi como estar em casa. Curiosa esta sensação, porque eu senti-me
sempre em casa. Ao longo de toda a prova nunca me senti “estrangeira”. Comi bastante em Vallorcine. Mais duas tijelas de canja!
Ó p'ra nós prontos p'ra ganhar isto!
Mais uma vez as palavras do
Mister: “vamos apostar neste
abastecimento: come bem, hidrata bem, carrega bem a mochila porque ainda vais
ter praticamente uma meia-maratona pela frente. Se tiveres tempo descansa um
pouco e alonga porque a esta altura já podes ter alguma fadiga acumulada e os
músculos podem dar sinal”.
Qual quê?! Nada. Fisicamente estava bem e de cabeça ainda
melhor. Saímos de Vallorcine e sabíamos que agora teríamos pela frente a tal
meia-maratona com algumas subidas. Aliás, o Miguel Catarino tranquilizou-nos
dizendo: “agora é só subir um montezito e
depois é sempre a descer até à meta.” Aquelas palavras fizeram com que eu e
o Paulo Soares nos entusiasmássemos e saíssemos dali dispostos a fazer aqueles
últimos quilómetros com um ritmo alucinante. Dissemos um para o outro: “como é? E para correr?” SIGA!!!!!
(Miguel Catarino, depois ajustamos contas: com que então é só um montezito?...)
Não sei porquê sempre que olhei para o gráfico achei que a
subida depois de Vallorcine era canja. Menos acentuada e portanto mais fácil.
Pois… Pensavas…
A partir daqui é que foram elas. Foram os 10km mais sofridos
de toda a prova. O sol começava a baixar e arrefeceu, a fadiga começava a dar sinais – nada
de preocupante, mas já acusava algum cansaço -, mas ao mesmo tempo a vontade de
chegar aumentava a cada passada. Lembro-me por duas ou três vezes o Paulo
Soares comentar: “epá, se depois daqui
ainda for para subir mais juro que me atiro para o chão e faço birra!” E
era. Era para subir mais. Mas ele não fez birra. Subiu e... De cara alegre!
Mais tarde digo eu: “mas
então já não provei que consigo subir estas montanhas? É preciso mais? Tenham
dó…” Admito que nesta fase apoderou-se de nós alguma desmotivação e cansaço
que nos levaram a tecer algumas considerações menos abonatórias sobre a
organização da prova. Nesta altura começa o Paulo Soares a receber telefonemas.
Onde é que estávamos, se faltava muito, se eu ia com ele… Algumas pessoas
estavam preocupadas com a barreira horária, porque tínhamos de chegar a La
Flégère antes das 20.30m. Acabámos por chegar às 19.30m, tínhamos portanto uma
hora de vantagem sobre a barreira horária.
Chegados a Lá Flégère foi altura de comer mais e beber
melhor. Aquela subida tinha acabado com a nossa resistência. Por momentos senti
que nos fomos um pouco abaixo, mas ao mesmo tempo estávamos a 8km (e sempre a
descer!!) da meta. Vesti a minha t-shirt térmica, pois já sentia frio. O Paulo
Soares vestiu o impermeável. Eu estava um pouco impaciente. O Paulo Soares
estava calmamente a comer e eu apressava-o. Queria ir embora dali, queria ir
para a meta. Estava ali tão perto, era só descer, correr, correr… Mas será que
conseguiria correr assim tanto? Já tinha os músculos tão maçados. Até os
braços, do uso dos bastões, me doíam. Amanhã vou parecer um cabide ou um
fantoche, vou andar com os braços para o lado sem os conseguir mexer.
O Paulo Soares levanta-se e diz-me: “como é moça? 4m50s/km até à meta?” Ao que respondo: “’bora lá, moço. Até vou levantar poeira a
descer!”
Ó meus amigos, deviam ser moscas para nos verem. Aquilo é
que foi bater perna e levantar poeira por ali abaixo. Deixei de ver o Paulo
Soares, tal foi o gás que lhe deu. Eu passava por pessoas que diziam coisas do tipo: “vais com a pressa! Ainda tens força para
isso?” Estes comentários ainda mais gana me deram. Corri, como nunca corri.
Sabia que lá em baixo estava a meta com que tanto sonhei.
Destes 8km, chorei durante 6km. Chorei tudo o que tinha a
chorar. Fiz um flashback dos meus últimos três meses de treino e fartei-me de
chorar. Mas só choro aqui, sem ninguém ver. Nem o Paulo
Soares percebeu. Ia na minha frente e mesmo quando esperava por mim rapidamente
limpava o rosto e olhava de lado.
Corri, corri, corri, chorei, chorei, chorei. Foi assim ao
longo dos quase 8km.
Ao entrarmos na vila já estava recomposta. O Paulo Soares
esperou por mim e continuámos a correr cheios de força. Quando nos aproximamos
do centro da vila começamos a ouvir os primeiros aplausos. Já eram quase oito e
meia da noite mas ainda havia muita gente nas ruas. O Paulo Soares foi o meu
anjo da guarda. Ele poderia ter
feito a prova, no mínimo, com menos duas ou três horas. Mas não. Vai de
Portugal a Chamonix fazer a prova comigo. Ganhei um irmão das corridas.
Há medida que progredimos no terreno os aplausos aumentam e
eu começo a sentir-me a estrela da companhia. Começamos a ouvir os nossos nomes
na boca de desconhecidos, algumas pessoas gritam:
P O R T U G A A A L
Estou a 100m da meta oiço o Paul Michel a gritar por mim,
olho para ele e vejo um ramo de flores. É para mim? E ele responde: é! Agarro
logo no ramo sem lhe dizer mais nada. Nem paro de correr, pego no ramo e fujo.
O mais importante era chegar à meta.
Apressamos o passo de corrida. A vontade de chegar à meta é
mais que muita. Entramos na rua principal, onde já só vejo as luzes do pórtico
(sim, desta vez o pórtico estava lá a minha espera!) e não me aguento. Começo a
sentir o corpo todo a tremer, mas as forças não me faltavam. E corri, corri,
corri… Começo a ver e a ouvir os nossos amigos. Ouvia coisas como: já está!
Conseguiste! Força! Está quase! Viva Portugal!
Mas o melhor de tudo estava para se ouvir e da voz de um
desconhecido. Quando me encontro a três metros de cortar a meta oiço uma coisa
tão simples como:
ANABELAAAAA DE PORTUGAAAAL
Era o speaker que gritava. Gritava o speaker, gritava o
Telmo, gritava o Miguel Catarino, gritava o Rui Barbosa, gritava o Paulo
Tavares, gritava o João Maia (que me conheceu naquele dia, naquele instante),
gritavam duas idosas que estavam na meta do lado esquerdo, gritava o Paul
Michel, gritava…
E ao longe, muito longe consegui ouvir os vossos gritos. Por momentos ouvi-vos gritar. Até o Mister gritou (baixinho, mas eu sei que gritou!)
Quem não gritou fui eu. Sempre pensei que chegava à meta em
êxtase, com garra e raiva de superar este objetivo. Mas não, cheguei mansa que
parecia um cordeiro. Como quem agradece humildemente tudo a que teve direito
nesse dia. Não consegui expressar alegria, só gratidão. Não consegui explodir,
só consegui abraçar quem lá estava e agradecer. Senti que ao agradecer àqueles,
estava a agradecer a todos vós que aqui vieram dar-me apoio ao longo desta
preparação. O treino é 1/3
da preparação, a cabeça outro 1/3 e a força dos nossos amigos compõem o
ramalhete. Esta é a minha fórmula mágica.
Grata a Deus, por me ter dado aquele dia. O dia em que foi o
meu dia!
Bravo, jeune fille!! Allez, allez Anabela!! Bon
courage!!
Nada me correu mal, tudo me correu bem. Nunca vacilei, nunca encontrei nenhum “muro”. Mesmo quando as dores apareceram rapidamente gritei com elas. Ri-me e cheguei a gozar com as dores. Mas isto só se consegue quando estamos no nosso dia. Neste dia, corpo e cabeça estavam em completa harmonia, num
alinhamento tão perfeito quanto uma pauta de música, onde clave de sol e notas
musicais saltitam cima-abaixo em frente ao maestro. Assim fui eu, naquele dia,
na montanha.
Senti-me uma bailarina, quando improvisei descidas ao sabor
de um ritmo que não era o meu.
Senti-me guerreira, quando olhava cá de baixo e via pessoas
pequeninas e coloridas no alto e sabia que era para lá que eu ia.
Senti-me a Heidi a caminho da cabana do avô, quando passei
por entre pastos e vacas com chocalhos barulhentos.
Senti-me vitoriosa e merecedora de cada passo que dava.
Senti que merecia tudo aquilo e muito mais. Naquele que foi o meu dia!
Acreditaram que era possível eu não deitar nem uma lágrima? Foi só uma e ninguém percebeu.
Eu, a bandeira, os fotógrafos, os amigos, o ramo de flores e o meu Kilian Jornet