Pela primeira vez, antes duma prova, ela dormiu toda a
noite. Mas só até às cinco da manhã. Bastava ter acordado às sete, mas a partir
das cinco não mais pregou olho. As fortes rajadas de vento que se ouviam lá
fora levam-lhe os pensamentos como se folhas secas de outono se tratassem.
Esses pensamentos só tinham um destino: ele, que já andava na montanha há mais
de seis horas. Na verdade, não só ele. Ela também pensava nos outros. Outros
amigos da “tribo”, que também calcavam as pedras da montanha. É impossível ser
egoísta ao ponto de só pensar nos nossos. Afinal de contas, ali, os nossos,
somos todos.
Sai de casa sempre com receio de se ter esquecido de algo.
Frontal? Confere. Telemóvel? Confere. Manta térmica? Confere. E assim vai,
novamente em pensamentos, a conduzir até à zona dos autocarros que a levariam até
à meta, daquela que ela já sabia que iria ser, a sua prova mais difícil.
O caminho até Garañón faz-se, com algum sobressalto, por
estradas muito estreitas e ladeadas por precipícios. Alguns atletas
recusavam-se até a olhar pelo vidro.
No início da viagem o rapaz sentado a seu lado mete
conversa. Era escocês. Era a sua primeira maratona de montanha. Achava que a
prova era fácil, sempre a descer, tal como o gráfico indica. Ela abanou a
cabeça para os lados, como quem queria dizer: “atenção que há duas subidas
muito fortes”. Mas ele desvalorizou. Nesse dia ela não estava para grandes
conversas e deitou a cabeça para trás em sinal de “não quero conversar”. Ele
percebeu e não mais abriu a boca. Era um dia em que ela não estava para
conversas.
Pela primeira vez, chega à meta sozinha. Não fala com
ninguém. Nem lhe apetece. Tira duas ou três fotos sem interesse à zona de
partida. Quase como se fosse um ato de obrigação. E foi. Era um dia em que não lhe apetecia tirar fotos.
Ainda estica o pescoço para ver se vê o português mais
conhecido do trail nacional, mas nada. Esteve quarenta minutos a olhar em
redor. Olhava para corpos esbeltos, depilados, musculados, alguns já a
tresandar a suor. Reparou nos buffs, nas marcas dos equipamentos, nos ténis que
usavam, nos óculos, nos gadgets… Havia ali todo um mundo cosmopolita no que
toca a cores, materiais, marcas e estilos. Era um dia em que lhe deu para
reparar e criticar os outros.
Apenas a sete minutos do tiro de partida entra na zona de check
in da meta onde lhe conferem o dorsal, a luz encarnada traseira e o chip preso
à mochila. Um minuto para a partida. O speaker começa a tentar galvanizar a
multidão com gritos de: “una meta, un sueño!” Grita pelas mãos no ar enquanto o
drone sobrevoava as várias cabeças coloridas. O momento da partida causa-lhe um
aperto grande no coração. Do género, os dados estão lançados e as fichas estão
todas apostadas. Agora é ir. Ir atrás.
Hoje tem a noção que fez a prova com a cabeça. Ainda não vos
tinha dito? Ela acabou. Sim, fez a prova, em 8h58m.
Pela primeira vez teve de puxar por este trunfo porque o
corpo teimava em não dar resposta. E pela primeira vez, surpreendeu-se a si
própria por isso. Com temperaturas elevadas, dores musculares e uma má nutrição
durante a prova, fez com que ela se sentisse a Núria Picas lá do sítio. Era um
dia em que o corpo não queria colaborar.
Estava muito calor. Nos abastecimentos era comum ver-se
atletas a vomitar. Uma mulher chegou mesmo a desfalecer. A partir do 20ºkm o
som das ambulâncias era mais frequente que o dos atletas a passar por ela. Mas
eram raros os que passavam que não tinham uma palavra de conforto de ‘ânimo’!
Retém na memória, desta fase da corrida, uma senhora, muito idosa, que olhou
para ela, com piedade, e lhe dizia: “alegria nesse cuerpo, Macarena!!” Nesse
momento, parou, debruçou-se sobre os bastões e derramou a segunda lágrima da
prova. Ali ao km20. Não havia alegria nenhuma naquele corpo, nem naquela
cabeça. Era um dia de poucas forças.
Ainda não vos tinha falado da primeira lágrima? Foi
derramada na partida. Partiu com a quase certeza que a prova não seria nada
fácil, apesar de tudo e todos pensarem o contrário. Foi uma lágrima apenas de
tristeza. Não de raiva, não de frustração, não de mágoa. Apenas tristeza. Para
ela correr tem de ser uma alegria, uma festa, uma exaltação de emoções. Mas
aquele dia, era um dia de poucas alegrias.
O truque foi fazer a prova em quatro partes. Tal como o
gráfico ilustra. A cada abastecimento enganava-se a si própria dizendo: “agora
são só mais 15km”; “agora são só mais 9km” e assim por diante. Até à meta. Fez
a prova toda a enganar-se a ela própria. É uma espécie de “tenho uma surpresa
para ti, mas só te deu quando chegares ao sítio x”. É mesmo tonta, o raio da
miúda! Mas a verdade é que se enganou e resultou.
O percurso da prova era demasiado técnico, duro, sujo,
quente e empoeirado para ela. A segunda grande descida faz-se por um single
track com pedra cascalheira solta, sempre com um precipício ora do lado
direito, ora do lado esquerdo. Foram quase duas horas a descer. Sempre a bater
com as pernas de forma firme para evitar a queda. Não é disto que ela gosta.
Ela gosta mais de corridas de ‘meninas’. Daquelas onde se pode correr. Ou pelo
menos, daquelas onde ela tem jeito para correr. Ali não. Ali ela só conseguia
progredir de forma a evitar a queda.
O calor foi outro grande inimigo. Muitos atletas
desidrataram, outros caíam por exaustão. No caso dela isso não aconteceu porque
levou isotónico e fazia, em cada abastecimento, a sua própria bebida. Nos
abastecimentos não havia isotónico. Nos abastecimentos havia: bananas oxidadas,
laranjas, nozes e amêndoas, cubos de fiambre e queijo, snacks salgados, pão rijo,
água e coca-cola. Uma lição que apende: tentar ser auto-suficiente, mesmo que a
organização garanta abastecimentos. Nunca se sabe o que (não) se vai encontrar.
Era um dia de muito calor e pouca comida.
Ela fez a prova a ingerir isotónico, água, laranjas e
amêndoas. Apenas isto. Um dia inteiro nisto. Desilusão no que toca a
abastecimentos. Faltava um caldo que reconfortasse o estômago, falta mais
cuidado na apresentação dos alimentos (bananas oxidadas?), faltava muita coisa.
Era um dia em que faltava muita coisa.
No último abastecimento dizem-lhe que faltam 8km para a
meta. Já com algumas dores nos gémeos teve de percorrer cerca de 4km num leito
de uma espécie de rio sem água, um empedrado irregular que só serviu para
provocar entorses àqueles que iam mais esgotados.
Os últimos 3km foram feitos na companhia de um senhor
residente na ilha. Foram 3km a puxar um pelo outro. Ali ela já teve vontade de
conversar e deu-lhe conversa. Ficou a saber o seu nome, de onde era, o que
fazia na vida, quantas provas já fez, quais as provas que fez, por onde já
viajou… Ela contou-lhe parte da sua vida também. Chegaram os dois à meta,
cumprimentaram-se e cada um seguiu para seu lado.
Saiu da zona de meta e quando lhe envergaram a medalha
derramou a terceira lágrima. A menina que lhe ofereceu a medalha de finisher
disse-lhe: CAMPEONA! MUJER FUERTE!
Era um dia de poucas coisas boas. Beijou a medalha e foi-se
embora. Foi para casa tomar banho, trocar de roupa e voltar à meta esperar o
Paul Michel.
Na secreta esperança que para ele tenha sido um dia de
muitas coisas boas.
(Ainda vou dar outra perspectiva desta prova. A perspetiva que falta: de quem está na meta à espera. Até já)
ÁHH GRANDE MULHER, não és do norte mas pareces ;) CAMPEONA!!!
ResponderEliminarEsse elogio vindo de um homem do norte que é um verdadeiro campeão... Deixam-me quase sem graça, Pedro! Também tu foste um guerreiro. Tu e todos os que fizeram aqueles 125km. Nem consigo imaginar o que é trazer 85km nas pernas e chegar a Garañón e levar com aquela estupada... Só mesmo para campeões, como tu!
EliminarBeijinhos
Olha...caiu a 4ª...
ResponderEliminarRais parta, rapariga, isto escreve-se?
Seja como fôr, não foi a tua prova, não foi a tua alegria, mas foi também onde descobriste algo mais, de ti, como atleta e até, quiça, como pessoa...
Relato muito sentido, Anabela, mas não tenho nada mais original que isto:
"CAMPEONA! MUJER FUERTE!"
Aguardo(amos) o resto, e que o Paul Michel tenha um pouco mais de alegria nas suas horas nas Canárias.
Bjs
:)))
EliminarSabes, JNR, não foi mesmo a minha prova. Mas nem sempre tem de ser, não é? Umas correm melhor, outras não. Gostamos mais de umas que outras. Mas não me arrependo de ter feito a prova. Aprendi imenso. Aliás, talvez tenha sido a prova onde mais aprendi e onde mais me conheci.
Lá diz alguém que nas adversidades é que nos conhecemos melhor. Esta prova teve isso de muito positivo.
Mas não volto lá. Está feita. Game Over!
Beijinhos
Guerreira!!! Mais uma vez muitos parabéns, pelo prova e por este texto tão profundo, melancólico, negro...gostei desta viagem. Fazer uma prova nesse estado de espirito é mesmo de Campeona, mujer fuerte!!! Com certeza foi uma grande aprendizagem e porra carago, tens mais uma no currículo. Com o Mont Blanc a tua bitola estava muito alta, mas pelo que contas não entendo tanto alarido à volta da Transgrancanária....tinha-a debaixo de olho, acho que vou coloca-la na gaveta ;)
ResponderEliminarBeijinhos para ti e um grande abraço para o Paulo.
Obrigada Carlos! ainda falarei mais sobre esta prova. Acho que vale a pena desmistificá-la, na minha opinião. Prova com um percurso desinteressante e fraca nos abastecimentos.
EliminarPossivelmente tens razão quanto à bitola, é possível. Monte Branco dá 20 a 0 a esta prova. Acho que não justifica viajar até lá, gastar dinheiro, para fazer aquela prova. Desaconselho-te.
O alarido à volta da prova prende-se com o facto da North Face colocar lá os seus atletas de elite e esta ser a primeira prova da época do World Tour. Na minha opinião só isso poderá justificar este alarido.
E bom, enfim, há gente que gosta daquele tipo de prova.
Mas o balanço final não é negativo.
Beijinhos
Assim não vale... Fizeste-me ler o teu relato com as lágrimas a querer sair...
ResponderEliminarParabéns "MUJER FUERTE!"
:)) Muito obrigada Francisco!
EliminarEu também chorei quando estava a escrever. Ao lembrar-me do que passei...
Beijinhos
Pelo relato parece que foste a um funeral e não a um trail!!! Fogo andas sempre animada, consegues um feito enorme e depois fazes um relato triste!!! não entendo!!! Força amiga Anabela e siga em frente!!! Beijinho e parabéns pela conquista ! Parabéns também ao Paul!
ResponderEliminarCarlos, o relato é o reflexo da prova. Não gostei da prova, percebes? Aquilo não é a minha praia. Por outro lado, vim de lá mais conhecedora da minha pessoa, o que é positivo.
EliminarPor fim, a t-shirt da SPEM ajudou-me a pensar que aquele meu sofrimento era incomparavelmente menor ao das pessoas que sofrem de esclerose múltipla. E por isso, há que seguir em frente e dedicar-lhes estes 46km! Foi isso que fiz! Espero em breve ter uma foto para te enviar!
Beijinhos e obrigada, meu amigo!
És grande Amiga! Agradeço todo esse empenho por aqueles que sofrem desta doença! A sério fico muito sensibilizado com essa atitude! Agora temos que preparar a festa na Pampilhosa!
EliminarSinceramente não esperava este tom no texto mas tendo sido o que sentiste, está bem expresso.
ResponderEliminarNesse estado de espírito, fizeste (e bem!) a prova, merecendo muito bem o "CAMPEONA! MUJER FUERTE!".
E gostei particularmente da frase tão verdadeira para nós atletas de pelotão "Afinal de contas, ali, os nossos, somos todos"
Animo, animo Anabela, que mostraste mais uma vez a tua garra! Grande orgulho!
Beijinhos :)
Foi muito duro, João! E a prova não é agradável em nenhum aspecto: nem o percurso nem a paisagem. Mas foi importante tê-la feito. Aprendi muito e acho que me tornei mais forte ou pelo menos mais conhecedora das minhas capacidades.
EliminarBeijinhos e obrigada por teres estado lá ;)
Magistral!
ResponderEliminarQue força de vontade e como transmite tão bem o que a alma sentiu!
Esse truque de se "enganar" a si proporia, de correr de abastecimento em abastecimento, é a essência do treino e das provas de um ultra maratonista.
Afinal as provas em Portugal tem abastecimentos bem melhores. Algumas autênticos banquetes. Estamos muito mal acostumados :)
E com as nossas desculpas aqui da redacção do UK agora vai ficar, para nós, com a alcunha da Marcarena! Todos aqui já lhe chamamos isso deste o director do UK até a senhor que faz a limpeza das nossas instalações :)))))))))))))))))))
Ficamos "à espera" do Paul Michel.!
Ai Jorge, agora consegui rir-me!! Aceito de bom grado esse nome: Macarena!! E não é preciso pedir desculpas, acho que o nome até me fica bem! :)
EliminarComentámos, entre nós portugueses, justamamente isso que referiu. Em Portugal, várias provas de trail, e com menos apoios, têm abastecimentos bem melhores. Estamos mesmo mal habituados. Ou então devemos valorizar mais o que cá se faz.
Beijinhos e muito obrigada!
Ana,
ResponderEliminarbelo texto,sincero,comovente e inspirador,texto de quem faz parte da "turma que tem sangue nos olhos",parabéns!!
Abraços.
Obrigada Jorge!
EliminarEsta prova roeu até ao osso!! :)))
Abraço e até breve!
uau, que brutalidade de relato e de prova! Realmente os gráficos que se lixem, é tudo a uma questão de escala. Realmente, olhando para o perfil parece sempre a descer, mas se virmos as diferenças de cotas no eixo das altitudes é que se tem noção. A parte final é comum com a prova dos 125? Um amigo meu o ano passado fez essa prova e diz que essa descida é durissima, pior que os 8500d+! Parabens Anabela, foste uma guerreira! Beijinhos e boa recuperação
ResponderEliminarOlá Filipe, é mesmo isso. Toda a gente desvaloriza esta prova olhando para o gráfico (Ah, e tal, isso é sempre a descer...). Outra coisa que os gráficos nunca mostram é o tipo de terreno.
EliminarEstes 46km são os últimos 46km da prova dos 125km.
O teu amigo, segundo o Paul Michel, tem toda a razão! ;)
Beijinhos e muito obrigada, Filipe!
Excelente relato! Conseguiste transmitir na perfeição aquilo que te foi na alma. E acredito que muito ficou por dizer.
ResponderEliminarProvas em que existe muito declive negativo mas depois com autênticas paredes pelo meio é do pior que há. Os músculos estão fatigados de levar pancada nas descidas e depois queremos que tenham força a subir. Esta bem :)
De qualquer forma parabéns! Não é todos os dias que se corre quase 50km!
Beijinhos e força para recuperar a alegria na próxima prova :)
A tua análise é certeira, Vítor: declives muito acentuados desgastam-nos os músculos e quando queremos correr não conseguimos. A meio da prova já só queria subidas!
EliminarMuito obrigada, Beijinhos
Parabéns grande Anabela!
ResponderEliminarÉ uma pena que não tenhas sido feliz nesta prova mas melhores virão! E aprende-se imenso nestas provas menos boas. Imenso!
Pelos vistos essa prova é só fama. E abastecimentos tão fracos numa prova desse calibre não se perdoa. Em Portugal provavelmente temos provas com abastecimentos bem melhores e percursos bem mais bonitos. Aliás, devo-te confessar que mesmo antes do teu relato essa prova nunca me seduziu muito, imagino-a como a descreves, muito seco, muito árido.
Melhores corridas virão amiga!
Beijinhos grandes e FORÇA! Toca a animar!
Obrigada Isa!
EliminarProvas assim também fazem parte e são uma grande aprendizagem. Aprendemos mais nestas do que nas outras.
Quanto aos abastecimentos só te digo uma coisa: venha de lá o trail da Pampilhosa!! Lembras-te?
Não recomendo a prova, é pouco interessante do ponto de vista paisagístico, do tipo de terreno... Há coisas mais giras para se fazer.
Beijinhos grandes
Ohhhh que caraças Mujer!!!
ResponderEliminarSabes quantas lágrimas derrubei!? Não sei .... não consegui contar.
Bolas, que me fizeste agora largar umas quantas.
Sabes o que és!?
Uma GUERREIRA!!!!
Foste! Alinhaste!! E Venceste!!!
Se já tinha uma enorme admiração por ti, ao ler este relato fiquei com ainda mais admiração!!
Foste VALENTE!
BRAVO
Muitos Parabéns!!
Beijinhos enormes
Ai, mulher, a gente mete-se em cada uma... Que mais parecem duas!!!
EliminarEsta foi-me ao osso. Acredita...
Lá longe temos uma força extra quando pensamos em vocês, sabes?! Tu sabes, eu sei que sabes.
Beijinhos grandes!
Hum...não gostei nada dessa descida sem fim, de pedra solta à beira dos precipícios... Mas...parece—me que algo menos bom te atormentava nesse dia pó isso a tua visão tão "negativa" da coisa, não sei... Bem, talvez faça a versão mais curta...está tudo em aberto por ora. Vou continuar a ler os posts seguintes sobre isto. Beijinhos e Obrigada por teres isto tudo "registado". Se na altura me passou ao lado por um ou outro motivo, hoje...leio com toda a atenção :-)
ResponderEliminarTens razão quando referes "algo menos bom te atormentava nesse dia"...
Eliminar(nesse dia e nos que se segiiram ao longo de três meses).
Bjs
Bem, se já psssou...fico contente. E não há dúvidas nenhumas que se não estamos bem, a nossa perceção das coisas, fica sempre sob um manto cinzento ou mesmo negro...
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